alea
Alea: Estudos Neolatinos
Alea
1517-106X
1807-0299
Programa de Pos-Graduação em Letras Neolatinas, Faculdade de Letras -UFRJ
Résumé
Cet article se penche sur les thèmes et les choix esthétiques du livre Tanatografia da mãe, d’Isadora Fóes Krieger, et propose un examen théorique des domaines auxquels il se rapporte, à savoir : la poésie et l'essai, la thanatographie et la biographématique. Il vise également à le situer dans le débat tendu entre l’auteur.e et la voix poétique, pour tenter de comprendre les impacts du thème - la mort et la mère - et de la perspective personnelle dans la création de son langage.
Philippe Vilain, na entrevista compartilhada com Philippe Lejeune (“Dois eus em confronto”), nos diz que “escrever o eu seria no fundo tentar ser verdadeiro, não descrever a verdade efetiva” (Vilain; Lejeune, 2014, p. 226). Essa visão sobre a escrita, e sobretudo sobre a escrita de si, tem como fundo a pressuposição de que possa haver uma verdade na escrita mesmo quando ela não corresponde a essa verdade “efetiva”, referencial. Nesse sentido, entendo a escrita como algo que pode dar algum acesso a uma verdade do sujeito, ou seja, como algo que permite entrever a forma como o sujeito percebe o mundo e se posiciona nele, mesmo quando não há um compromisso declarado de dizer as coisas “como são” - resquício do imperativo historiográfico de Ranke e impossibilidade prática à qual, no entanto, alguns (Annie Ernaux, Philippe Lejeune, e outros) não se resignam. Ainda nesse sentido, penso que a literatura (aqui considerando a escrita, mas também a leitura) pode ser contingencial, e não necessariamente um modo de viver certas experiências, e não apenas de relatá-las - em parte, é isso o que chamamos experiência estética. Haveria, assim, uma forma de experiência (Erfahrung) que não se dá apenas na vivência (Erlebnis)1 do mundo, mas que acontece por intermédio da elaboração na escrita e na ressonância que resulta dessa escrita quando a lemos. Evidentemente, não se trata de anular a diferença entre a vida e a literatura, mas de apontar a existência, na literatura, de um modo particular de vivência que nos abre para nós mesmos e para os outros.
Lendo Tanatografia da mãe (2022), de Isadora Fóes Krieger, não pude deixar de pensar que estava diante de uma obra que era resultado do esforço de dizer algo verdadeiro - um esforço, podemos dizer, de sinceridade, herança distante, neste traço, da tradição iniciada por Rousseau em As confissões (2018). Como em Vilain, trata-se de uma tentativa de ser verdadeiro, ao invés de tentar apreender esse objeto inapreensível que é “a verdade”. Pois Tanatografia da mãe, como o título já antecipa, é a escrita da morte, e não de qualquer morte, mas a morte do Outro fundamental, que nos recebe no mundo - a mãe. É, portanto, a escrita de uma perda que ressignifica o sujeito (ou “eu”) dessa escrita, e que, para ser verdadeira, não se contenta com uma descrição fria.
“Para que a tanatografia se realize de maneira plena, não basta que a morte se afigure como seu objeto - é preciso que a autoria esteja por ela marcada”, nos diz Jefferson Dias (2023, s/p) em sua resenha sobre o livro. É preciso, então, que haja uma implicação do sujeito da escrita na morte que se propõe a escrever: que não seja uma posição apenas observadora, mas também de testemunha e de participante nesse processo de perda. Por isso, não se afasta de vez a presença da poeta no texto. Também nesse sentido, ao contrário do que se almejava no Alto Modernismo, não há separação radical entre pensamento e sentimento: o poema-ensaio de Isadora Krieger é tanto um espaço de pensar a morte e a figura materna como o espaço de realização do luto, que inclui os afetos evocados pela recordação e pela perda da mãe.
A presença da autora no texto, bem como a abertura para o afeto, insere o livro de Krieger na esteira que acolhe o subjetivismo e não vê incompatibilidade entre a reflexão intelectual e o sentir. Nesses termos, distancia-se da filosofia, aproxima-se de alguma poesia, bem como do ensaio, cabendo a menção ao trecho de O ensaio como forma, de Adorno, em que, após criticar a ideia de ensaio como obra artística (defendida, segundo ele, por Lukács), pondera:
Também aqui, como em todos os outros momentos, a tendência geral positivista, que contrapõe rigidamente ao sujeito qualquer objeto possível como sendo um objeto de pesquisa, não vai além da mera separação entre forma e conteúdo: como seria possível, afinal, falar do estético de modo não estético, sem qualquer proximidade com o objeto, e não sucumbir à vulgaridade intelectual nem se desviar do próprio assunto? (Adorno, 2003, p. 18).
Neste ponto, especialmente no que tange à crítica da separação rígida entre o sujeito e o objeto da pesquisa (evidentemente, nos limites da investigação filosófica e estética) e à descrença na perspectiva de uma abordagem do estético de modo não estético, em vista de um ideal próprio às ciências duras que dificilmente se aplicariam ao campo artístico, estamos de acordo. De modo análogo, o projeto realizado por Tanatografia da mãe parece partir do pressuposto de que não é necessário operar separações tão artificiais (positivistas) para compor uma obra poética reflexiva, intensa e comunicativa. Lembro os versos de Ana Martins Marques: “Uma coisa que nunca entendi é por que / em geral se acredita que o poema / não é lugar para pensar” (Marques, 2021, p. 26).
Isadora, portanto, está presente no texto. Ainda assim, pela razão evidente de que não posso dizer por outra pessoa sobre aquilo que ela sente e experimenta, opto pela expressão “do sujeito da escrita” para separar, ao menos em parte, a voz poética da tanatografia de sua autora. Por razão de espaço, tempo e recorte, não entrarei a fundo na discussão sobre a relação entre o “eu lírico” e o “eu referencial” do poeta, mas considero válida uma rápida menção a Dominique Combe, que, no ensaio A referência desdobrada: o sujeito lírico entre a ficção e a autobiografia (1996/2010), propõe que “na comunicação lírica, trata-se antes de uma tensão jamais resolvida [entre a “referencialidade autobiográfica” e a ficção], que não produz nenhuma síntese superior” (Combe, 2010, p. 128). Para o ensaísta, “melhor seria abordar o problema (...) de um ponto de vista dinâmico, como um processo, ou, melhor ainda, um ‘jogo’” (Combe, 2010, p. 124). Nesta reflexão sobre Tanatografia…, considero que essa interpretação é a que melhor condiz com o que ocorre no livro: o sujeito da escrita se apresenta no tensionamento entre as duas instâncias, entre a poeta e a voz que se deixa ler em sua poesia, imiscuindo-se sem tornar-se uma só instância.
Do eu referencial “empírico”, é especialmente na seção final do livro, “A queda da mãe”, que aparecem as principais marcas autobiográficas explícitas - pois a tanatografia da mãe compõe também um ponto na escrita da vida da filha, isto é, de sua autobiografia. Grafadas em negrito, as passagens são extraídas da certidão de óbito de Olga Fóes, nome da mãe da poeta, em trechos entre os quais se intercalam outros versos, por meio dos quais somos apresentados aos aspectos mais objetivos da morte de Olga:
data e hora de falecimento / dois de julho de dois mil e vinte e um / às cinco horas e quarenta e um minutos
(...) causa da morte / insuficiência respiratória aguda / infecção por coronavírus.
(...) certidão de óbito / nome: olga fóes / declarante: isadora fóes krieger
(...) nascida em quatro de novembro / de mil novecentos e quarenta e três.
(...) averbações/anotações a acrescentar / não deixou testamento e bens a inventariar.
(...) sexo: feminino/estado civil e idade: separada - setenta e sete anos.
(...) sepultamento/cremação / crematório atenas. (Krieger, 2023, p. 95 ss).
Há outros que parecem extraídos de situações ou contextos reais, como as frases da mãe, sobretudo as frases-queimaduras: “este poema foi escrito com as minhas cinzas” (Krieger, 2023, p. 98) e “me deixa morrer” (Krieger, 2023, p. 111). Quase desnecessário dizer que é na capacidade de impactar (ferir, tocar), e não no seu grau de realidade, que está a força dessas passagens; afinal, a poesia de Tanatografia… não está na morte ou mesmo no relato da morte, mas nesse saber-fazer com a morte que a transfigura num acontecimento que se faz mais sensível e significativo ao ganhar contorno literário, no trânsito entre vivência e a experiência.
A meu ver, é essa combinação do real autobiográfico, com o estatuto diferencial de uma escrita duplamente carregada na psique e na cultura - por trazer, mais que a mãe ou a morte, a morte da mãe -, junto da sensibilidade da linguagem de Tanatografia… o que eleva o tom do texto ao sublime, quase sagrado, visto estarmos diante do que é sagrado para o sujeito, como parte de sua intimidade, vendo e experimentando, ao modo de cada leitor, o seu desamparo, sua orfandade. Aqui, no mais íntimo, tudo é verdadeiro, mesmo o que só acontece na e pela linguagem: é a verdade da escrita que não corresponde e nem tem o dever de corresponder à verdade “efetiva”, pois, na poesia, sabemos que ela é, de antemão, dotada de perspectiva e de trabalho criativo.2
É da escrita da experiência da morte da mãe, da morte na vida e do rearranjo de seus fragmentos, e não da coleta de uma história integral de vida (ou de morte), que Tanatografia… se compõe. Aliás, é bom ter em mente que a biografia e a tanatografia não mantém entre si uma relação de pura oposição, bem como à vida não se opõe, em maniqueísmo simplório, a morte. Derrida aponta para essa dificuldade na passagem a seguir, extraída de Otobiografias:
Isso a que chamamos vida - coisa ou objeto da biologia e da biografia - não defronta, e é a primeira complicação, algo que seja para ela um objeto oponível, a morte, o tanatológico ou o tanatográfico. A “vida” também sofre ao se tornar objeto de uma ciência, no sentido que a filosofia e a ciência sempre deram a essa palavra, como ao estatuto legal da cientificidade. (Derrida, 2021, p. 25-26).
A ideia derridiana de que a vida “sofre” ao tornar-se um objeto da ciência nos interessa, no âmbito da discussão sobre as articulações entre a vida, a morte e suas escritas. Que seria fazer “sofrer” a vida ao colocá-la como objeto da investigação científica? Intuímos uma possível resposta com a leitura de Erick Gontijo Costa em Acurar-se da escrita, em que o autor nos chama a atenção para o modo como Barthes propõe alternativamente a biografia, a biografemática, como vida escrita que inclui a morte. Cito:
A escrita de vida, biografemática, às voltas com a morte, horizonte do vivo, é também tanatografia. Vida e morte num só gesto, planificadas, sobrepostas, se espraiam, pulverizam-se em letras sobre as páginas que se dobram sobre si: livro. Mas antes, a partir do desaparecimento, da perda, é preciso fazer forma, transpor o informe. (Costa, 2021, p. 171-172).
Tanatografia da mãe, evidentemente, transpõe o informe da vivência bruta ao dar tratamento poético-ensaístico à perda sofrida. Sua linguagem, poema-contínuo ou ensaio-poético, escapa à mortificação da vida que Derrida e Barthes identificam na ciência e nas biografias tradicionais. A ciência, que segundo a metáfora (desgastada) vê a vida pelo microscópio, subtraindo o sujeito de seu organismo, confundindo vida e biologia; a biografia, na sua fracassada tentativa de totalização, apagando as marcas da singularidade em prol de um acúmulo de dados tedioso e sem cor.
Por outro lado, a biografemática não se opõe à tanatografia, porque a reflexão sobre a morte nela se inclui. Nela, há também pulsão de morte (embora, felizmente, não apenas); há o fascínio terrível da morte, mas também a busca por captar lampejos daquilo que um dia fomos, o que um dia nos tornou tão singulares.
A morte, no entanto, é crucial, porque por nela se orienta uma leitura da vida, a contrapelo, e porque na relação do sujeito com a morte se identifica um modo de estar no mundo pelo qual se compreende também a relação do sujeito com a vida que escolheu. Não à toa as mortes de filósofos, sobretudo a magistral morte de Sócrates, símbolo da coragem intelectual, mas também no exemplo de Sêneca e de outros mais, se tornam pontos importantes na recepção de suas doutrinas, já que, pela morte, se verifica sua convicção em seus ideais.
Assim, Barthes propõe, no já muito citado prefácio a Sade, Fourier, Loyola:
Porque, se é necessário que, por uma dialética arrevesada, haja no Texto, destruidor de todo sujeito, um sujeito para amar, tal sujeito é disperso, um pouco como as cinzas que se atiram ao vento após a morte (ao tema da urna e da estela, objetos fortes, fechados, instituidores de destino, opor-se-iam os estilhaços de lembrança, a erosão que só deixa da vida passada alguns vincos); se eu fosse escritor, já morto, como gostaria que a minha vida se reduzisse, pelos cuidados de um biógrafo amigo e desenvolto, a alguns pormenores, a alguns gostos, a algumas inflexões, digamos: “biografemas”. (Barthes, 2005, p. XVI-XVII).
Pormenores, gostos, inflexões, biografemas: de fato, em RolandBarthes por Roland Barthes (Barthes, 2003), sua autobiografia (a ser lida, segundo suas instruções, como um romance), o autor constrói pela escrita uma imagem de si e de sua vida que tem como petição de princípio a dispersão, o fragmento, a contradição de suas figuras, suas metamorfoses. Nada ali pretende nos fazer acreditar num sujeito unívoco, centrado, coerente e sempre idêntico a si mesmo, e, no entanto, ao final, temos uma ideia de Barthes não pelo semblante de totalidade, mas pelo resíduo de uma vida. Os restos, portanto, mantêm papel fundamental.
Em termos de uma estética, a biografemática, por definição, dará prioridade às formas fragmentadas, pedaços de um “eu” incoerente e furado, cuja imagem não pode ser completa porque o próprio “eu” é incompleto, confuso, dispersivo. Essa estética encontra lugar também no seio da poesia e do ensaio, formas que gozam de ampla liberdade para jogar com traços mínimos e, por meio deles, potencializar a proliferação de seus sentidos e imagens. Trata-se também, é claro, de uma disposição de leitura, que resiste ao esgotamento.
Na escrita de Tanatografia… também parece ser essa a abordagem proposta pela poeta: a construção de uma paisagem literária que se vale de cacos, de sobreposições, de empréstimos e retomadas, de metáforas (algumas delas absolutas), de sonhos, de enigmas, de lembranças e de invenções. A escolha por essa linguagem não é gratuita, pois responde a uma impossibilidade do real da morte em se deixar apreender como tal pelas vias tradicionais da simbolização. Assim, Tanatografia… circula no terreno da morte da maneira possível aos vivos: de fora, na vertigem da experiência de testemunho da morte de um outro que, no entanto, está incorporado no eu. Portanto, escreve-se sobre uma parte de si que se perdeu na perda do outro, isto é, a parte que corresponde a quem se era para a pessoa que partiu, de modo que o luto também é, em certa medida, de si mesmo, como ensina Freud em Luto e melancolia (1917).
Somente quem fica, contudo, no curso da vida, é que pode escrever sobre essa experiência, o que faz com que a escrita que investiga a morte seja sempre, em última instância, ensaística, diante da impossibilidade de escrever um tratado integral sobre a morte, de descrevê-la de dentro, do além-morte, em sua inteireza - pois para meditar sobre ela é preciso estar vivo, pelo menos na perspectiva laica. O desconhecimento é, assim, parte fundamental da morte, cujo caráter é inevitavelmente ambíguo: certo, porque virá; enigmático, porque não se sabe quando, nem como, nem de que maneira será experimentada. Sobre a morte, enquanto não nos chega, filosofamos e ficcionalizamos como podemos.
Da experiência da perda, no entanto, pode-se, não sem dificuldades, falar. A experiência da perda se vive e, nos limites da língua, transmite-se e até se escreve (o êxito da transmissão a depender da ressonância do estilo). Em Tanatografia da mãe, o sujeito da escrita também se questiona, oferecendo sua resposta: “como falar do inominável do rapto senão / através da poesia?” (Krieger, 2023, p. 41). É por estar diante da morte da mãe - “o Inconcebível” (Krieger, 2023, p. 54) - que se faz necessária a criação de uma linguagem própria, uma língua de metáforas, de alegorias, de etimologias, de buscas no dicionário, de idas e vindas num poema contínuo fragmentado que avança em espirais, de referências filosóficas e místicas - a Empédocles, Hermes Trismegisto, Santo Agostinho, São Boaventura, Pascal, Kant, Edmond Jabès (Krieger, 2023, p. 15-16) -, de remissões literárias e psicanalíticas - com Marguerite Duras, Maria Gabriela Llansol, Sylvia Plath, Michèlle Roberts, Melanie Klein (Krieger, 2023, p. 27-29), Sigmund Freud (Krieger, 2023, p. 34) -, de proposições sobre Deus em que Deus e a Mãe se confundem. Assim, escreve a poeta, ressignificando as proposições filosóficas sobre Deus:
a Mãe não está na resposta. como o diamante / em seus reflexos, ela está na espelhante questão.
a Mãe sobe os degraus com a noite nos braços.
a Mãe é, a Mãe não é.
a Mãe é um círculo cujo centro está em toda / parte e a circunferência em lugar nenhum. (Krieger, 2023, p. 27).
Para escrever a morte da mãe, nada menos que as metáforas do sagrado; a Mãe - grafada assim, com inicial maiúscula -, alegoria da mãe-esfinge. Como Deus, ela também é uma alteridade incalculável, indecifrável, na sua vertente nomeada “a Mulher que Não Sei” (Krieger, 2023, p. 26). Lemos, portanto, acompanhando a perplexidade do sujeito da escrita: “a pessoa mais estrangeira, mais inapreensível, / que encontramos na vida é a mãe. a sua loucura / me marcou para sempre” (Krieger, 2023, p. 27).
Para essa experiência e esse objeto, no limiar entre o que é o que não é o eu, o enigma da linguagem reflete a opacidade do ser e do acontecimento sobre os quais se escreve. A linguagem, nesse caso, traça uma relação de similaridade entre forma e conteúdo, espelhando o assombro do sujeito da escrita diante desse objeto (a Mãe/a Morte) - assombro que se assemelha ao termo grego thaumázō (θαυμάζω), cujas traduções incluem:
1 ficar maravilhado; pasmar;
2 olhar com admiração, com respeito; admirar; maravilhar-se com alguém ou algo (...);
3 ficar admirado; espantar-se; estranhar; surpreender-se com algo ou alguém (...);
4 admirar-se; perguntar-se com admiração; ver com admiração (...);
5 prestar honras; venerar (...);
6 ser objeto de espanto. (DGP, 2007, p. 209).
Por isso mesmo, a linguagem de Tanatografia da mãe se apresenta como uma linguagem obscura, compatível com a perplexidade do sujeito do poema com a alteridade da Mãe. Depende, portanto, de uma entrada em sintonia com essa linguagem, que, como é frequente na poesia, provoca um deslizamento de sentidos, não se deixando capturar. Diante das imagens privilegiadas no texto - indicadas pela transformação da inicial minúscula em inicial maiúscula, que espalham-se, às vezes repetindo-se, ao longo de todo texto, como a Carta, a Pétala Real, a Ruptura, os Eventos Oníricos, a Nostalgia da Clareira, o Livro, as Cinzas, o Olho da Jangada -, paira a dúvida sobre o sentido do que estamos lendo, já que é preciso construir a relação entre tais imagens e suas refrações junto ao texto, nos alfabetizando nessa linguagem poética para o real. Aqui, não há estabilidade de sentidos, não há relações fixas para criar uma correspondência ideal entre imagem e palavra-segredo. Há versos que não se deixam desvendar, e ainda assim provocam ressonâncias - já que o fracasso da decifração nos permite também experimentar algo diverso do entendimento.
Gostaria de lembrar, quanto a isso, um trecho instigante de Starobinski, presente em É possível definir o ensaio?, no qual o autor propõe, quanto à escrita do ensaio, a partir de Montaigne:
Escrever, para Montaigne, é ainda uma vez ensaiar, com forças sempre renovadas, num impulso sempre inaugural e espontâneo de tocar o leitor no ponto mais sensível, de forçá-lo a pensar e a sentir mais intensamente. É às vezes também surpreendê-lo, escandalizá-lo, provocá-lo à réplica. Montaigne, escrevendo, queria reter algo da voz viva, e sabia que a palavra é metade de quem fala, metade de quem a ouve. (Starobinski, 2012, p. 21).
Mais uma vez, no ensaio - e, eu acrescentaria, também na poesia -, andam juntos pensar e sentir, surpreender e provocar, na partilha que se aposta com o leitor de um resto de “voz viva”, à qual se procura, se não reter, evocar, criar. Na potência plurissignificativa das imagens de Tanatografia…, é a voz viva (“a língua incandescente”), que transfigura os sentidos e instabiliza suas relações, o que nos provoca e convida à experiência, a qual será possível sob a condição de que também apostemos na palavra, com a metade que nos cabe.
Para encerrar, retorno ao ponto de onde partimos. Havia dito, no início, que há um modo de experiência que se opera pela literatura. Não pretendo entrar no mérito da discussão quanto ao seu caráter supostamente terapêutico, nem me parece relevante, aqui, chamar essa escrita de sublimação ou sinthoma. Contudo, é certo tratar-se de uma elaboração, de uma invenção de um sujeito para dar um destino a uma outra vivência; pois a perda da mãe não é ainda a escrita da perda da mãe; do contrário, seria apenas tanatos, não tanatografia. Pergunto-me: o que essa escrita realiza, para além do livro que nos chega?
Em sua resenha sobre o livro de Krieger, Luciana Tiscoski observa que o poema ritualiza o luto da mãe (Tiscoski, 2022, s/p), o luto que persiste em sua ausência. Jefferson Dias, por sua vez, escreve que “na tanatografia empreendida por Isadora, a mãe vai se presentificando conforme viramos as páginas, de modo que testemunhamos ‘o Tempo da mãe coincidindo com o Tempo do/ Livro’” (Dias, 2023, s/p, grifo meu). Fazendo confluir as duas leituras, penso que a presentificação da mãe, invocada e recorporificada simbolicamente pela escrita, ao encerrar-se junto com o livro - daí a coincidência entre os tempos - faz do próprio livro o monumento com qual torna-se possível encerrar os ritos funerários que a obra performa, torna-se possível uma despedida e um fechamento. Atendendo ao pedido da mãe de que a deixe morrer - mãe agora morta no próprio livro, agora não mais presente na sua corporificação simbólica anterior -, o livro se encerra, deixando que cheguem ao fim, a um só tempo, a mãe encarnada nas palavras, o luto ritualizado na escrita e o próprio livro.
Na mesma entrevista mencionada ao iniciar este ensaio, Vilain havia dito: “existe um parentesco entre o ato de escrever e a experiência de se soltar” (Vilain; Lejeune, 2014, p. 236). Penso que Tanatografia da mãe atesta, à sua maneira singular, essa experiência, produzindo um espaço em que a poesia toma o lugar da perda, não para supri-la, mas para que, na agudeza que torna as coisas mais precisas, seja possível dar a essa perda uma forma, onde encontramos algum consolo.
Referências
ADORNO, Theodor. O ensaio como forma. In: ADORNO, Theodor. Notas de literatura I. Tradução de Jorge de Almeida. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2003. p. 15-46
ADORNO
Theodor
O ensaio como forma
ADORNO
Theodor
Notas de literatura I
Tradução de Jorge de Almeida
São Paulo
Duas Cidades; Editora 34
2003
15
46
BARTHES, Roland. Roland Barthes por Roland Barthes. Tradução de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Estação Liberdade, 2003.
BARTHES
Roland
Roland Barthes por Roland Barthes
Tradução de Leyla Perrone-Moisés
São Paulo
Estação Liberdade
2003
BARTHES, Roland. Prefácio. In: BARTHES, Roland. Sade, Fourier, Loyola. Tradução de Mário Laranjeira. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. IX-XX
BARTHES
Roland
Prefácio
BARTHES
Roland
Sade, Fourier, Loyola
Tradução de Mário Laranjeira
São Paulo
Martins Fontes
2005
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COMBE, D. A referência desdobrada: O sujeito lírico entre a ficção e a autobiografia. Revista USP, [S. l.], n. 84, p. 113-128, 2010. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/revusp/article/view/13790 . Acesso em: 25 nov. 2023.
COMBE
D
A referência desdobrada: O sujeito lírico entre a ficção e a autobiografia
Revista USP
[S. l.]
84
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2010
Disponível em: https://www.revistas.usp.br/revusp/article/view/13790
25 nov. 2023
COSTA, Erick Gontijo. Acurar-se da escrita. Belo Horizonte: Cas’a, 2021.
COSTA
Erick Gontijo
Acurar-se da escrita
Belo Horizonte
Cas’a
2021
DERRIDA, Jacques. Otobiografias: o ensinamento de Nietzsche e a política do nome próprio. Tradução de Guilherme Cadaval, Arthur Leão Roder e Rafael Haddock-Lobo. Rio de Janeiro: Zazie, 2021.
DERRIDA
Jacques
Otobiografias: o ensinamento de Nietzsche e a política do nome próprio
Tradução de Guilherme Cadaval, Arthur Leão Roder e Rafael Haddock-Lobo
Rio de Janeiro
Zazie
2021
DIAS, Jefferson. Díptico do extravio: Isadora Krieger e a parturição de uma poética póstuma, por Jefferson Dias. Aboio, 2023. Disponível em: https://aboio.com.br/isadora-krieger-e-a-parturicao-de-uma-poetica-postuma-por-jefferson-dias/ . Acesso em: 26 nov. 2023.
DIAS
Jefferson
Díptico do extravio: Isadora Krieger e a parturição de uma poética póstuma, por Jefferson Dias
Aboio
2023
Disponível em: https://aboio.com.br/isadora-krieger-e-a-parturicao-de-uma-poetica-postuma-por-jefferson-dias/
26 nov. 2023
DICIONÁRIO GREGO-PORTUGUÊS [DGP], vol. 2. Daisi Malhadas, Maria Celeste Consolin Dezotti, Maria Helena de Moura Neves (coordenação). Cotia (SP): Ateliê Editorial, 2007.
DICIONÁRIO GREGO-PORTUGUÊS
[DGP]
2
Malhadas
Daisi
Dezotti
Maria Celeste Consolin
Neves
Maria Helena de Moura
Cotia (SP)
Ateliê Editorial
2007
FREUD, Sigmund. Luto e melancolia. In: FREUD, Sigmund. Obras completas, vol. 12: Introdução ao narcisismo, Ensaios de metapsicologia e outros textos (1914-1916) . Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. p. 170-194
FREUD
Sigmund
Luto e melancolia
FREUD
Sigmund
Obras completas, vol. 12: Introdução ao narcisismo, Ensaios de metapsicologia e outros textos (1914-1916)
Tradução de Paulo César de Souza
São Paulo
Companhia das Letras
2010
170
194
KRIEGER, Isadora Fóes. Tanatografia da mãe. 2ª edição. Jaraguá do Sul: Editora da Casa, 2023.
KRIEGER
Isadora Fóes
Tanatografia da mãe
2ª
Jaraguá do Sul
Editora da Casa
2023
MARQUES, Ana Martins. Lugar para pensar. In: MARQUES, Ana Martins. A vida submarina. São Paulo: Companhia das Letras, 2021. p. 26
MARQUES
Ana Martins
Lugar para pensar
MARQUES
Ana Martins
A vida submarina
São Paulo
Companhia das Letras
2021
26
ROUSSEAU, Jean-Jacques. As confissões. Tradução e prefácio Wilson Lousada. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2018.
ROUSSEAU
Jean-Jacques
As confissões
Tradução e prefácio Wilson Lousada
Rio de Janeiro
Nova Fronteira
2018
STAROBINSKI, Jean. É possivel definir o Ensaio? Remate de Males, Campinas, v. 31, n. 1-2, p. 13-24, 2012. Disponível em:Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/remate/article/view/8636219 . Acesso em: 13 maio. 2024.
STAROBINSKI
Jean
É possivel definir o Ensaio?
Remate de Males
Campinas
31
1-2
13
24
2012
Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/remate/article/view/8636219
13 maio. 2024
TISCOSKI, Luciana. Enigma conjurado. Rascunho, 2022. Disponível em: https://rascunho.com.br/ensaios-e-resenhas/enigma-conjurado/ . Acesso em: 26 nov. 2023.
TISCOSKI
Luciana
Enigma conjurado
Rascunho
2022
Disponível em: https://rascunho.com.br/ensaios-e-resenhas/enigma-conjurado/
26 nov. 2023
VILAIN, Philippe; LEJEUNE, Philippe. Dois eus em confronto: entrevista a Annie Pibarot. In: NORONHA, Jovita Maria Gerheim. Ensaios sobre a autoficção. Tradução de Jovita Maria Gerheim Noronha e Maria Inês Coimbra Guedes. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2014. p. 223-242
VILAIN
Philippe
LEJEUNE
Philippe
Dois eus em confronto: entrevista a Annie Pibarot
NORONHA
Jovita Maria Gerheim
Ensaios sobre a autoficção
Tradução de Jovita Maria Gerheim Noronha e Maria Inês Coimbra Guedes
Belo Horizonte
Editora da UFMG
2014
223
242
1
Ver “Erfahrung”, “Erlebnis”, em História e Narração em Walter Benjamin: entrevista com Jeanne-Marie Gagnebin. Disponível em: https://portalcioranbr.wordpress.com/2022/08/21/historia-narracao-walter-benjamin-jmgagnebin/. Acesso em: 15 mai. 2024.
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Um parêntese, inconveniente e necessário: por apostar na sinceridade que aparece em Tanatografia… e em certa verdade subjetiva que subjaz à poesia, para não entrar no mérito do uso da primeira pessoa do singular em tom ensaístico, me parece que transmito ou posso transmitir a sensação de uma crítica ingênua, talvez sentimental. Talvez seja, de fato, algo ingênua, algo sentimental. De todo modo, me pergunto sobre o que isso nos diz quanto a uma tendência crítica pós-moderna, que insiste na desconfiança, no sarcasmo, na iconoclastia, no anti-subjetivismo, e, com isso, tantas vezes acaba perdendo de vista a capacidade de uma conexão mais honesta com o que está para além da ironia e dos embustes que com frequência transformam a relação entre autor e crítico num jogo de gato e rato, fechando-se para outras possibilidades. Não se trata de assumir uma posição anti-pós-moderna, mas, pelo contrário, de ser capaz de observar seus ganhos - a capacidade de relativizar as “verdades absolutas”, de interrogar os discursos, de desconstruir mitos -, reconhecendo também suas limitações. Dito isso, expresso minha esperança de que esse parêntese facilite o entendimento de que, neste ensaio, também assumo uma posição autoral afetiva, buscando compreender a construção de Tanatografia… sem desconsiderar seus aspectos textuais, mas também levando em conta nessa análise os efeitos que a leitura provocou em mim -, pois, pelas circunstâncias a que esse livro me chegou em mãos, não posso pretender uma leitura que não seja necessariamente afetada. Dizer isso, espero, torna mais claros o objetivo e o contexto de onde parto.
Parecer Final dos Editores
Ana Maria Lisboa de Mello, Elena Cristina Palmero González, Rafael Gutierrez Giraldo e Rodrigo Labriola, aprovamos a versão final deste texto para sua publicação.
Authorship
Isadora Saraiva Vianna de Resende Urbano
Concepção, projeto, pesquisa bibliográfica, análise e interpretação dos dados
Redação e revisão do manuscrito
Aprovação da versão final do manuscrito para publicação
Responsabilidade por todos os aspectos do trabalho e garantia pela exatidão e integridade de qualquer parte da obra
Isadora Urbano.
Doutoranda em Estudos Literários na Universidade Federal de Minas Gerais e graduanda em Filosofia, na mesma instituição. Também pela UFMG, realizou a graduação e o mestrado em Letras. É membro dos grupos de pesquisa Espaços da Literatura Contemporânea (ELC) e Mito e Modernidade (MiMo). Trabalha na área de Teoria da Literatura e Literatura Comparada, e atualmente estuda teoria da ficção.
Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, BrasilUniversidade Federal de Minas GeraisBrazilBelo Horizonte, MG, BrazilUniversidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil
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Programa de Pos-Graduação em Letras Neolatinas, Faculdade de Letras -UFRJAv. Horácio Macedo, 2151, Cidade Universitária, CEP 21941-97 - Rio de Janeiro RJ Brasil , -
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