Open-access Ensaiar a incerteza: “a ideia de poesia” como questão para a prosa

Essay on Uncertainty: the “Idea of Poetry” as a Question for Prose

alea Alea: Estudos Neolatinos Alea 1517-106X 1807-0299 Programa de Pos-Graduação em Letras Neolatinas, Faculdade de Letras -UFRJ Resumen Partiendo del debate crítico sobre una "idea de prosa" como horizonte para la poesía contemporánea, en el que está implícita cierta comprensión histórica de la prosa relacionada con la actualidad y sus consecuencias políticas, propongo, a través de lecturas localizadas de las obras heterogéneas de Jorge Luis Borges, Michel de Montaigne y Machado de Assis, una herencia narrativa específica que pueda invertir los vectores tradicionales del problema. Aunque esté distante de las experimentaciones hibridizantes con lo poético, la prosa descripta se constituye en dirección a una "idea de poesía" y, a partir de las elaboraciones sobre el misterio, lo sublime y la experiencia de lo sensible, elabora otros modos de experimentar la responsabilidad de lo literario. La hipótesis es que el género ensayístico, especialmente a través de la explotación de las consecuencias de la obra de Montaigne, se configura como una herencia posible para que la prosa ensaye formulaciones sobre lo literario cercanas al pensamiento poético. 1 João Barrento, em prefácio de Ideia de prosa (Agamben; Barrento, 2013), prepara o leitor para uma experiência postulada sobre o acontecimento herético da filosofia agambeniana, consciente “da precariedade sobre a qual se funda toda a observação que tem ainda algo do ‘espanto’ antigo frente ao mundo” (2013, p. 11). Nesse sentido, a filosofia do autor impede qualquer interrupção entre estética e pensamento e deriva de figuras da escritura um modo de pensar consequente para com a própria linguagem. A figura do enjambement, por exemplo, constituir-se-ia como gesto ambíguo “que se movimenta para duas direções opostas, para trás (verso) e para frente (prosa)” (Agamben; Barrento, 2013, p. 32). Estaria nessa sublime hesitação entre o som e o sentido a hibridização do verso, a qual é, no entanto, “irresistivelmente atraído para o verso seguinte, para atingir aquilo que rejeitou fora de si: esboça uma figura de prosa” (Agamben; Barrento, 2013, p. 31). Para Agamben, as figuras de prosa dramatizariam a linguagem em si mesma em sentido profanador, como uma oposição à dimensão reveladora da tradição hermenêutica e mística, cara à poesia. Tais consequências pensadas a partir dos signos de “prosa” e “poesia” podem ser interpretadas como um diagnóstico, se não da situação factual relativa à condição precária do lugar da poética para a contemporaneidade, ao menos do discurso de sua crise, nos termos do crítico Marcos Siscar (2015), especialmente pela maneira como o contemporâneo estabelece uma posição de desconfiança com a poesia e, por diversas vezes, via crítica especializada ou via mídia jornalística, anuncia sua morte. O diagnóstico pode ser compreendido, nesse sentido, tal qual uma das variações do discurso de crise da poesia como dispositivo discursivo, um modo pelo qual a poesia moderna se constitui a partir da anunciação de seu lugar de crise, da perda de sua posição de prestígio e de ocupação na partilha social de sua comunidade. É pela chave de uma situação de crise que Siscar interpreta justamente as tensões de aproximação e confronto entre poesia e prosa como uma questão “emergente” para o discurso poético do contemporâneo. Esse confronto tem lugar menos a partir de “prosa” como gênero, ou como oposição à poesia, e mais a partir de conceituações de ordem política, nas quais “prosa” parece corresponder, nos termos de Pierre Alféri, ao “ideal baixo da literatura”, como um horizonte que introduz um diferente ritmo para a poesia, uma diferente orientação e uma diferente destinação. Tal tendência não deixa de ser, portanto, um movimento discursivo de crise poética, na medida em que “da diferença com a prosa, a poesia e a teoria literária do século XX habituaram-se a retirar uma definição da poesia, tratando-a como uma interrupção da prosa - ou do prosaísmo - da linguagem” (Siscar, 2015, p. 31). Em alguma medida, a crise corresponderia à confrontação com uma definição de poesia que coincidiria com a interrupção do prosaísmo. Está em questão uma proposta poética que coloca em xeque a autonomia da linguagem poética, como foram compreendidas, em grande medida, poéticas decisivas para a tradição da modernidade, como é o caso da obra de Stéphane Mallarmé, por exemplo. A despeito das contra leituras que vão em direção oposta, negando o caráter distanciado de um suposto autotelismo da linguagem poética moderna, a “ideia de prosa” como tendência para o poético não deixaria de se vincular, ainda que de distintas maneiras, com a posição de “muitos críticos do século XX, [que] retomando o julgamento hegeliano do descompasso entre a modernidade e o caráter fundador (‘épico’) da poesia, usaram a prosa como figura de atualidade para reforçar a centralidade da escrita romanesca” (Siscar, 2015, p. 37). Uma ideia de prosa centralizada por sua atualidade, ou por sua consequência - política, ética, social - parece corresponder a uma “saída” para a poesia, que teria historicamente “negligenciado” tudo o que é “baixo” em prol da elevação de registro em direção ao “sublime” (Siscar, 2015). Partindo dos mesmos pressupostos relativos ao problema levantado, sobretudo levando em consideração as complicações do paradigma da tradição moderna a respeito do lugar de prestígio da prosa e de sua (ao menos aparente) centralidade cultural - segundo certa leitura de época -, gostaria de partir de um exercício imaginativo: seria possível encontrar, de dentro da tradição prosaica e narrativa, casos para os quais o horizonte literário sugerido redirecione-se, senão exatamente à prosa poética ou ao poema em prosa, a uma “ideia de poesia” em que se pesem outras consequências políticas e culturais a serem colocadas à tona? Para isso, proponho pensar por meio de algumas leituras localizadas a propósito da obra de dois autores facilmente “agrupáveis” ao paradigma da centralidade narrativa: Jorge Luís Borges e Machado de Assis. A despeito dos pontos de contato pertinentes que poderiam ser traçados entre ambos (Fischer, 2016), interessa aqui pensá-los como casos exemplares de reconhecidos prosadores, cuja centralização de suas obras literárias, sobretudo narrativas, é notória, assim como o é a consolidação institucional de suas figuras, as quais se confundem com a própria história de institucionalização literária argentina e brasileira. Ainda que longe de inexistente ou obscura, porém, a recepção crítica de suas respectivas obras poéticas apresentam trajetórias secundarizadas em comparação à atenção dada às produções em prosa de cada um. Sendo assim, seria compreensível reconhecer em ambos os autores uma “ideia de prosa” narrativa literariamente interessada; no entanto, os caminhos e as (in)decisões formuladas pela prosa borgeana e machadiana, assim como a relação complicadora que suas obras historicamente apresentaram às injunções por uma responsabilidade do literário, sugerem um movimento outro, que talvez aponte para uma certa direção (minoritária) da prosa, cujas consequências parecem remontar a diálogos consequentes com a obra ensaística de Michel de Montaigne e com “uma ideia de ensaio” que dela deriva. 2 Jorge Luís Borges (2019, p. 21-23), em prólogo que escreve para a primeira edição do livro de poemas Elogio de la sombra, apresenta algumas proposições a respeito de uma definição de poesia, a partir do alerta para a variedade fronteiriça de verso e prosa a ser encontrada na obra. Ao menos três aspectos chamam a atenção no texto: a preocupação do poeta com a dimensão ética como questão para sua poesia (“Uma das virtudes que me fazem preferir as nações protestantes às de tradição católica é seu cuidado com a ética”); a vontade de que o livro, de modo geral, seja lido como se fosse composto apenas por versos (“prefiro declarar que essas divergências me parecem acidentais e que gostaria que este livro fosse lido como um livro de versos”), a despeito da variabilidade formal de seu conteúdo; e, por fim, uma breve caracterização da poesia como elemento tão misterioso quanto outras coisas do mundo (“A poesia não é menos misteriosa que os outros elementos do orbe. Um ou outro verso afortunado não pode envaidecer-nos, porque é dom do Acaso ou do Espírito”). Em consonância com o encerramento suspendido ao final do prólogo: “neste mundo a beleza é comum”. Se a presença de um pensamento ético e a localização, se não rebaixada, ao menos igualada, do mistério e da beleza da poesia a outros tantos elementos do mundo - ou seja, em certo sentido, ao próprio mundo - retraem a exclusividade do poético em relação a um outro, a vontade de que os poemas sejam lidos como versos, cujo sucesso dependeria “do Acaso ou do Espírito”, e a atenção às variações tipográficas menos como aspectos rítmicos do que como modos de anunciar a “emoção poética” (Borges, 2019) não deixam de preservar a relação imponderável - e sublime - entre o acontecimento do verso e o mistério, que, no entanto, se encontra resguardada de uma dimensão reveladora ou messiânica da versificação (Agamben; Barrento, 2013). Sob esse aspecto, a implicação ética de um outro - o leitor - como aquele responsável, juntamente com quem escreve, por um “fato estético”, ou, ainda, por um “acontecimento estético”, parece funcionar como elemento decisivo para a compreensão do que está em jogo entre a reivindicação de uma certa singularidade do verso (mais como ideia do que como aspecto de “gênero”, ou definição da partícula poética) e a revelação de sua aproximação com o mundo. A relação entre poesia, leitura e mundo reaparecem, ainda que de maneira mais consequente, na palestra “O enigma da poesia” (Borges, 2019), proferida por Borges em Harvard, em outubro de 1967. Nela, apesar do que o próprio título sugeriria, o autor se coloca de prontidão avesso à tentativa de qualquer revelação a respeito do enigma da poesia, mas sim a favor de uma partilha a respeito de suas incertezas para com a questão: “Assim, como disse, tenho apenas minhas perplexidades a lhes oferecer” (p. 10). O enigmático da poesia parece residir, nesse caso, não exatamente em um essencialismo - como se o autor recusasse, em certa medida, o valor sagrado da Escritura, ainda que a reivindique sob determinadas circunstâncias no mesmo texto -, afinal, a poesia não estaria nos livros, sendo estes apenas “ocasiões para a poesia” (p. 12). Antes disso, a poesia constituiria a vida e essa constituição poderia ser compreendida (tornada sensível) por meio de uma relação, como o autor exemplifica a partir da recuperação da imagem de Berkeley: “[...] lembro que ele escreveu que o gosto da maçã não estava nem na própria maçã - a maçã não pode ter gosto por si mesma - nem na boca de quem come. É preciso um contato entre elas” (p.12). Está aí uma espécie de partilha imponderável entre autor, livro e leitor: Pois o que é um livro em si mesmo? Um livro é um objeto físico num mundo de objetos físicos. É um conjunto de símbolos mortos. E então aparece o leitor certo, e as palavras - ou antes, a poesia por trás das palavras, pois as próprias palavras são meros símbolos - saltam para a vida, e temos uma ressurreição da palavra. (Borges, 2019, p. 12). A ideia de uma ressurreição que se dá mediante o encontro entre texto e leitor - “Direi: a arte acontece cada vez que lemos um poema” (Borges, 2019, p. 15) -, muito semelhante ao que Walt Whitman (poeta recorrentemente reverenciado por Borges) propõe para aquele que o lê em Leaves of Grass, relaciona-se a um sentido metafísico de presença, ou a uma necessidade da ideia de presença, como fica mais evidente no decorrer da palestra, uma vez que a memória imagética do livro como corpo morto é atribuída ao pensamento de Platão, o qual, segundo Borges, inventa o diálogo filosófico por sentir saudades de seu mestre, Sócrates (“[...] a ilusão de que, a despeito do fato de Sócrates ter bebido cicuta, o mestre ainda estava com ele”). De igual maneira, seria o desejo de encontro com os mestres do passado, como Macedônio Fernandez, por exemplo, que faria com que o escritor argentino procurasse lê-los ou imitá-los (“[...] a fim de que possa pensar como eles teriam pensado”). A poesia, portanto, estaria intimamente associada ao estado de relação e partilha com um outro - do passado ou que virá (o leitor) -, menos ligada a uma “tarefa” do estético do que a um prazer “ontológico” com a língua: a discussão não está longe, entretanto, de uma figura de comunidade. A “tarefa da poesia” reaparece, não obstante, de outra maneira em sua palestra “O narrar uma história” (Borges, 2019), proferida em dezembro de 1967. Dessa vez, parte decisiva de sua argumentação, a qual vai na direção de uma crítica ao romance moderno e ao seu suposto esgotamento, se dá incisivamente a partir da impossibilidade da criação de um “épico” contemporâneo, uma vez que “a poesia, como disse, foi fragmentada; ou melhor, de um lado temos o poema lírico e a elegia, e do outro temos o narrar uma história - o romance” (p. 56). Nesse momento, a divisão entre prosa e poesia aparecem consequentemente no pensamento de Borges não apenas como divisão formal ou genérica “entre cantar algo e enunciar algo”, mas como figuras da impossibilidade moderna em sustentar um aspecto central para a constituição da épica: a figura de um herói, “um homem que é um modelo para todos os homens” (p.56), incompatível com um mundo onde a narrativa não pode terminar senão em fracasso. O problema do descompasso hegeliano entre a épica e o romance reaparecem, portanto, no pensamento borgeano, que reconhece o descompasso, mas explicita seu interesse em um sentido inverso ao que a tradição do pensamento crítico, de modo geral, estabeleceu à prosa romanesca. O horizonte esperado por Borges compreende a possibilidade de que “o narrar uma história e o cantar um verso pudessem se reunir outra vez” se junto da narrativa, “tivermos o prazer adicional da dignidade do verso, então algo grandioso terá acontecido”. Essa promessa futura aparece diversas vezes durante o texto, embora em nenhum momento o seu sentido mais exato seja esclarecido (ainda que possamos inferir a sugestão de busca por uma totalidade positiva como princípio de comunidade, bem como reconhecer na ideia a presença - nem tanto subreptícia - do conservadorismo do autor, quando este imagina que a nova épica talvez “venha dos Estados Unidos já que, como vocês todos sabem, os Estados Unidos têm um senso ético para o certo e o errado”). Cabe frisar, todavia, a inversão da compreensão borgeana, que aposta num horizonte de indistinção entre narrativa e verso por meio de uma prosa em direção ao verso, isto é, a algo perdido pela fragmentação da poesia. O elemento perdido, por sua vez, não deixa de ser sugestivo (e problemático) para pensarmos em sua própria prosa, já que o autor tampouco tomou essa tarefa para si: “Só fui refletir sobre o assunto bem tarde na vida; e, além disso, não sei se conseguiria experimentar a épica (embora tenha trabalhado em dois ou três versos épicos). Isso cabe aos mais jovens fazer” (p. 61). De fato, a obra em prosa borgeana recusa, tal qual “O narrar uma história” explicita, a gravidade e a grandiloquência (a negatividade da épica?) do gênero romanesco como um todo, atendo-se à elaboração da narrativa breve, forma pela qual ganha reconhecimento mundial. A retração de sua prosa, não raro descrita por seu autor em “tom baixo,” contrasta com o destino épico que sua própria obra não almeja para si, mas espera dos outros. Contudo, não é o caso, a meu ver, de simplesmente ignorar os espaços de elaboração do autor em aparente contradição com sua obra (optando pelo que a obra “parece querer dizer”), ou neutralizar as contradições entre pensamento e obra em prol da unificação do projeto, mas pensar conjuntamente a partir de ambos os discursos que conformam sua “obra”, a fim de estabelecer consequências para o que há de aporético no pensamento e na ficção (bem como no pensamento da ficção) borgeana. Primeiramente, é válido situar diferenças de proposição de uma obra em prosa (contando ficção e ensaio) que se estende por mais de meio século de produção. Nesse sentido, o prólogo escrito por Borges (1995, p. 15-18) para seu livro de contos El Informe de Brodie (1970), obra narrativa contemporânea às palestras citadas e ao Elogio de la sombra, é indicativo de uma certa coerência de posição a respeito de sua ideia de prosa e sugestivamente aprofunda outros elementos caros ao problema. Segundo o prefácio, o autor, “resignado em ser Borges”, afirma ter encontrado, já em avançada idade, a sua voz, cujo elemento determinante (ao menos para a prosa que os contos exemplificariam) parece corresponder mais propriamente a uma postura de escrita do que a um estilo singular. Essa postura se contrapõe tanto aos artifícios do Barroco ou às experimentações de novidades literárias (“Renunciei às surpresas de um estilo barroco; também às que querem proporcionar um final imprevisto. Preferi, em suma, a preparação de uma expectativa ou a de um assombro. Durante muitos anos acreditei que me seria dado chegar a uma boa página mediante variações e novidades [...]”), quanto ao comprometimento fabular (ou moralizante) do literário (“Só quero esclarecer que não sou, nem jamais fui, o que antes se chamava um fabulista ou um pregador de parábolas e atualmente um escritor comprometido”). Tanto no primeiro quanto no segundo caso, prevalece uma posição de distanciamento com aquilo que a narrativa pode ou deve pretender realizar, seja ao duvidar de certa retórica da radicalização inovadora (podemos dizer, de certos sentidos imbuídos às Vanguardas) em favor de uma relação de encontro com a dimensão testamentária da tradição (incluso a tradição de seus símbolos - as palavras), seja ao duvidar daquilo que o literário poderia realizar de consequência política e moral, sobretudo em diálogo com um sentido de realismo, termo com o qual Borges, não obstante, define sua obra (Borges, 1995), mas a aproximando da distração e da comoção sensível, para a qual, como vimos, o leitor tem papel determinante. Ainda assim, sugestivamente, o prólogo dedica-se a uma defesa contra a suposta acusação de absenteísmo do autor (“Esse propósito não quer dizer que me encerre, segundo a imagem salomônica, em uma torre de marfim”), chegando a descrever sua tomada de partido biográfica (filiar-se ao Partido Conservador) como signo para o que parece ser mais consequente politicamente: a adesão ao ceticismo como posicionamento ético, central na medida em que parece confirmar a postura escolhida para o terreno da prosa. Curiosamente, El Informe de Brodie, diferentemente dos célebres El Aleph (1949) ou Ficciones (1944), foi lido criticamente por uma chave “política”, como obra mais atenta à (já reincidente) temática gauchesca, aos conflitos nacionais-formadores argentinos e à temática da violência, do qual o conto “El otro duelo”, presente na coletânea, seria caso exemplar (Miele, 2020). A narrativa, contada pelo narrador a partir do depoimento de um amigo que ouvira falar do testemunho do militar Juan Patrício Nolan, tem como mote central certa “diabrura” do passado de Nolan: após vencer uma batalha que remonta às guerras fronteiriças durante o período de formação dos territórios argentinos e uruguaios, descobre que dois dos soldados vencidos e capturados, Manuel Cardoso e Carmem Silveira, gaúchos de Cerro Largo, mantinham uma rivalidade mortal sem uma origem conhecida. Nolan, então, propõe como jogo um duelo que encerre a rivalidade: após serem degolados, os dois devem correr e aquele que ir mais longe vencerá a disputa. Ao fim, “Das gargantas brotou o jorro de sangue; os homens deram alguns passos e caíram de bruços. Cardoso, na queda, estirou os braços. Ganhara a corrida e talvez jamais soubesse disso” (Borges, 1995, p. 46). Miele (2020, p. 130) reconhece no conto, que de antemão tematiza a tópica do conflito pela tradição das narrativas de heroísmo gauchescas, um outro conflito: “aquele que opõem as liberdades individuais ao controle estatal, entre governantes e governados, numa relação que normalmente é intermediada e definida pelo comportamento violento que confunde o que é ou não civilizado”, o que não deixaria de ser uma resposta para a contemporaneidade argentina da década de 1970, cindida entre as violências do regime militar e a revolta armada dos Montoneros. Convém reconhecer, ainda assim, o que há de problemático (de indecidível) na relação entre o prólogo e os contos do livro, sem apostar na relação de sentido apenas pela contradição ou pela ironia entre o que uma figura de autor diz ser sua obra e o que ela figuraria textualmente de modo mais urgente. Como já dito, o prólogo parte de uma necessidade de estabelecer posições, tanto políticas, quanto estéticas, para as narrativas que virão a seguir. Se “El otro duelo” dramatiza de maneira tão visceral a violência e autoridade, inclusive como aspectos fundadores de uma história argentina, e pode ser lido como resposta para o momento de sua publicação (uma resposta ao contemporâneo), o modo como Borges posiciona o sentido que espera de realismo para sua prosa também não deixa de ser uma resposta: caberia pensar, por exemplo, na escolha da narrativa por figuras quase míticas como a dos dois gaúchos, bem como de uma origem imemorial para o ódio que corresponde ao motivo do conflito: “Como recuperar, depois de um século, a obscura história de dois homens, sem outra fama que aquela que lhes deu o duelo final?” (Miele, 2020, p. 83). O signo da incerteza é condição para a própria constituição da narrativa - “Um capataz do pai de Reyles, que se chamava Laderecha e ‘que tinha um bigode de tigre’, recebera por tradição oral certos pormenores que agora transcrevo sem maior fé, já que o esquecimento e a lembrança são inventivos” (Miele, 2020) -, e, não por acaso, reaparece como chave decisiva para o encerramento do conto: “Ganhara a corrida e talvez jamais soubesse disso” (Miele, 2020, p. 87). Além disso, a narrativa imediatamente anterior a “El otro duelo” em El Informe de Brodie tem como título “El duelo”, e, apesar de tematicamente pouco ter em comum com a narrativa de Manuel Cardoso e Carmem Silveira - trata-se das desavenças e disputas veladas entre duas pintoras argentinas, vindas da burguesia de Buenos Aires durante meados da década de 1950 -, a duplicidade explicitada pela sequência dos títulos parece remontar tanto à atenção dada ao sentido figurativo da narrativa em detrimento da descrição a respeito do desenvolvimento das ações, quanto, de maneira ainda mais sugestiva, à ideia de preservação da incerteza a respeito da natureza da disputa como um pacto (um segredo) irrecuperável: “Só Deus (cujas preferências estéticas ignoramos) pode conceder a glória final. A história que se desenrolou na sombra acaba na sombra” (Miele, 2020, p. 80); ideia, aliás, em certa medida reconhecível em outro célebre conto da coletânea, “La intrusa”. Em síntese, para o que nos interessa mais diretamente, parece possível ler as narrativas realistas de El Informe de Brodie em sintonia com o pensamento subjacente às intervenções públicas de seu autor nesse mesmo período, como a formulação de uma resposta que aponta para certa postura de prosa, a qual, se mantendo de dentro de uma tradição realista e de um “ideal baixo” em seus propósitos, ensaia para uma direção em que as figuras de sua narrativa e os modos de se dizer (a respeito daquilo que “a prosa poderia dizer sobre o real”) se aproximam do terreno simbólico e incerto que Borges reconhece como sendo da poesia. Esse terreno se dá, misteriosamente, tal qual um pacto no acontecimento de leitura: experiência de assombro e de dúvida partilhada pelo narrador de “El duelo” ou de “El otro duelo” (e mesmo pela experiência sempre incompleta de resolução, como no fim trágico de Cardoso) com o leitor. Esses casos podem ser pensados como cenas que figuram a transmissão da experiência do irrecuperável, compartilhada com a tradição e colocada como possibilidade de ser prosa, isto é, de dramatizar algo - inclusive a respeito do presente - sem que sua consequência se torne sinônimo de atualidade, novidade ou literalidade. Uma ideia de poesia para a prosa, portanto, em que o incerto e o inseparável da relação sensível entre sujeito e mundo são aspectos centrais para se pensar em um modo de se estar no mundo e de narrá-lo; em suma, uma ideia de poesia para a qual a postura política e estética do ceticismo (como Borges se declara no prólogo de El Informe de Brodie) é fundamental, com todo o peso “de pensamento que se ensaia” que o termo carrega. 3 A essa altura, o nome de Michel de Montaigne é incontornável para se pensar nas implicações entre o pensamento moderno do ceticismo e uma “ideia de poesia” vinculada a certa tradição da prosa moderna. Borges, em seu ensaio “La supersticiosa ética del lector”, incluído em Discusión (1932), aponta para uma identificação entre sua obra e a de Montaigne a partir do registro de sua prosa, escrita como se fosse “conversada” e não “declamada”: Almagro (2015) reconhece nessa identificação um modo do autor pensar sua prosa como alheia à elaboração técnica do estilo em favor da discussão das ideias e do assunto, de acordo com as lições de Montaigne. A posição borgeana, avessa aos “recursos da técnica” (vale pensar a questão em relação à crítica que o autor, no prólogo de El Informe… faz às operações de composição de Poe, autor que contribui com certo paradigma de entendimento de produção literária, já no século XIX, ao formular aspectos de sua realização em termos de “técnica” e “efeito”) e atenta à dimensão conversacional do texto, parece completar seu sentido a partir de outra aproximação entre sua obra e a de Montaigne: a consequência pensada por ambos a respeito da dimensão livre da leitura e da posição ética do leitor, como lembra Arrigucci Jr (1994, p. 21): “Referindo-se a Montaigne, cuja alegria de leitor não se cansa de louvar, afirma que a leitura obrigatória é para ele uma coisa inconcebível, já que nenhuma felicidade pode ser obrigatória”. A posição favorável da leitura e o tom prosaico de Montaigne, no entanto, carregam mais sutilezas para o pensamento do que um entendimento precipitado de liberdade, felicidade e simplicidade parecem suscitar. Jean Starobinski, em seu célebre texto “É possível definir o ensaio?” retoma certa ambiguidade conferida ao próprio nome do gênero de textos comumente definidos como ensaios: se a formulação destes corresponderia, inclusive etimologicamente, à “pesagem exigente, o exame atento”, também estaria implicado ao gesto “o enxame verbal cujo impulso se libera” (Starobinski, 2011, p. 14), formalizado pela pedra de toque de Montaigne, Que sais-je?, facilmente interpretada pelos detratores do ensaísmo como atestado da inconsequência e da superficialidade do gênero. A injunção em forma de uma acusação de irresponsabilidade, seja ela intelectual ou política, aponta justamente para o que a declaração de ignorância de Montaigne tem de potencialidade para o pensamento e para a ética, na medida em que a incerteza vinda de um “eu” que se inscreve como espectador e leitor do mundo que o cerca explicita a subjetividade de sua experiência tal qual parte constitutiva de um mundo cujo sentido está longe de ser naturalmente observável (nessa direção, o argumento de seu conhecido ensaio a respeito do encontro com os Canibais é exemplar). Além disso, como observa Starobinski ao retomar a expressão de Denis de Rougemont (1936), Montaigne reconhece sua posição no mundo e suas opiniões sobre o mundo como dimensões correlatas, em que reflexão e prática contribuem para um “pensar com as mãos”, isto é, para o gesto simultâneo de “meditar e manejar a vida” (Starobinski, 2011, p. 17), o que produz, por sua vez, um lugar de resposta público que não exclui o sujeito da dimensão prática de sua vida pública, mas a pensa de dentro. Sua posição “mais espectador que ator” (Starobinski, 2011), ou mais “leitor do que autor”, em que está incluída a defesa de Montaigne a respeito da liberdade para a atividade de leitura, parece já antecipar, em alguma medida, o dilema ético da não obrigatoriedade da resposta (ou da leitura) como condição para a responsabilidade de um gesto ético, nos termos de Jacques Derrida (2014). Também nesse sentido, a dimensão da dúvida endereçada ao leitor (inscrita no tom conversacional da prosa), a quem a obra de Montaigne busca tocar “no ponto mais sensível” (Starobinski, 2011, p. 21), não deixa de ser um gesto ético de provocação à réplica: “Montaigne, escrevendo, queria reter algo da voz viva, e sabia que a palavra é metade de quem fala, metade de quem a ouve” (Starobinski, 2011, p. 21). Trata-se, em suma, da reivindicação de um ethos que recupera valores caros à tradição filosófica do ceticismo. É certo que Montaigne lera os céticos, como as Hipotiposes de Sexto, e diversos dos tropos argumentativos da obra são aproveitados em ensaios seus (Eva, 2001, p. 8), por exemplo em “Apologia”, escrito na mesma época em que provavelmente se deu a leitura de Sexto, nos idos de 1576 (Eva, 2001). No entanto, segundo Eva (2001, p. 9), sua relação com a filosofia é mais complexa, como o próprio Montaigne anuncia ao se caracterizar como “nouvelle figure”, “um novo tipo de filósofo, impremeditado e fortuito” (Eva, 2001). Menos do que simplesmente enquadrar-se a certos pressupostos do pensamento cético antigo, a leitura que Montaigne realiza da tradição implica uma prática em que se está inscrito o sentido moderno para a crise da atividade dogmática do pensamento, no qual se coloca como questão “o próprio sentido do trabalho filosófico, o estatuto das teses que ele produz, o método que as engendra, o tipo de conhecimento que eventualmente se pode obter” (Eva, 2001, p. 39). O modo como essa crise epistemológica se concretiza na obra dos Ensaios reside em sua própria condição e postura de escrita, isto é, num modo de conceber a prosa que narra os acontecimentos do mundo a partir de si em oposição ao pensamento filosófico. Essa “postura de prosa”, ainda que mantenha em seu horizonte o aspecto mundano dos acontecimentos e preocupações com a vida, assim como recuse a artificialidade do estilo elevado (“afetado”) para a escrita, opõe o aparato da cientificidade e da filosofia à espontaneidade do prazer, conectada a um sentido de “poesia” (Carneiro, 2009). A naturalidade com que o poeta “despeja em fúria tudo que lhe vem aos lábios, como a gárgula de uma fonte, sem digerir ou pesar” (Montaigne, 2000-2001) encontra-se com o impulso e o “enxame verbal” em questão para a formulação do ensaio, na medida em que a natureza versátil e leve da poesia, com seus “saltos e cabriolas”, “encontra-se acima das regras e da razão”; portanto, distante do exercício convencional de apreensão intelectiva (Carneiro, 2009, p. 53). A dimensão sublime da poesia, com ritmo e razão próprios, opera a possibilidade em abertura da prosa ensaística, tornando-a um lugar de dramatização da passagem entre a razão cética do julgamento e a indeterminação sensível da experiência, sem que os vetores dessa passagem sugerida acabem resolvidos por meio de um recurso hibridizador, ou sejam, neutralizados. Em certo sentido, portanto, o ensaio corresponderia ao lugar em que uma “ideia de poesia” atua sobre certa tradição para a prosa, o que condiciona não apenas a possibilidade de um gênero ou um estilo literário distinto, mas a formulação de uma questão ética e política para o terreno da prosa, em direção outra da tradição hegeliana. Não por acaso, a desconfiança em relação ao ensaio - como uma injunção vinda dos discursos científicos de saber - reencena a oposição hierarquizada que a tradição ocidental estabelece entre o discurso filosófico, consequente com a episteme, e o discurso literário ornamental, falseador, ou mesmo irresponsável. Por essa via, o legado de Montaigne que chega aos ficcionistas pósteros, em determinados casos, aparece reinventado menos como paradigma de um pensamento originário da filosofia do que como um pensamento em favor do literário, a partir do qual se encontrariam outras maneiras de se ensaiar uma resposta para o problema da responsabilidade. Parece-me ser o caso, por exemplo, de Machado de Assis, para quem a presença notória de Montaigne aparece comumente compreendida pela crítica especializada, em linhas gerais, como parte da constelação de autores clássicos e moralistas eleitos pelo autor, dentre os quais constam também Pascal e Sêneca. A relação primeira que se estabelece entre Machado e Montaigne corresponde à herança do pensamento cético, cujas variações vão da pecha (também atribuída a Montaigne, em seu tempo) de absenteísta, relativista e superficial - como se Machado diagnosticasse, via a elaboração filosófica, a incapacidade do humano se alçar para além de si mesmo (Miguel-Pereira, 1973) - à dialética de uma compreensão materialista-existencialista da realidade, segundo expressão de Otto Maria Carpeaux para “realçar a ambivalência do escritor” (Gimenez, p. 62). Em todo o caso, apesar da balança a respeito do juízo feito sobre Machado e sobre o posicionamento ético de sua obra ter se invertido já a algum tempo, sobretudo a partir de leituras racializadas de sua obra (De Assis Duarte, 2013; Dutra, 2022), é evidente a maneira como a figura de autor machadiano, constitutiva de um espaço de contaminação entre a figura pública e a dimensão ficcional de seus narradores, perpassa a dramatização de um gesto ético que não parece se resolver de maneira simples. Em seu ensaio “Machado de Assis e a filosofia”, Benedito Nunes (1989, p. 7) pouco diz sobre as consequências de Montaigne para Machado (“Montaigne ensinou a Machado as motivações naturais das atitudes humanas;”), mas localiza a dimensão paródica - e, portanto, problemática - da resposta machadiana ao discurso filosófico em uma crônica assinada pelo autor na série “Bons Dias” (Assis, 1888-1889), de outubro de 1892, na qual um narrador observa a conversa entre dois burros filósofos, um otimista, e o outro, pessimista, a propósito dos seus destinos em um futuro em que a tração animal será substituída pelo bonde elétrico: “Para um deles, seria a conquista da liberdade definitiva; para o outro, ganhariam a liberdade de apodrecer abandonados nas ruas, até que uma carroça, puxada por outro burro, viesse recolher o cadáver”. O crítico recupera um sentido de tradição clássico para a figura dos burros, bem como para a figuração de seu diálogo (“Pois que o burro filosófico machadiano, descendente embora longínquo do asno de Luciano e de Apuleio [...]), assim como estabelece a posição machadiana favorável ao riso (em alguma medida, à diversão) em oposição ao que seria a “asinificação” da filosofia humana (“Essa inversão humorística da filosofia[...] põe-nos, de chofre, em face [...] da clássica polêmica entre poesia e filosofia - ou, em termos modernos, entre ficção e filosofia - expressamente referida por Platão no começo do Livro X de A República”) (Nunes, 1989). Junto a isso, o texto apresenta outras nuances: publicado na última década do século XIX, o conteúdo da discussão dos burros reproduz o debate ético a respeito do futuro incerto da população escravizada recém libertada no Brasil (Lopes, 2010), o que complexifica o gesto do narrador da crônica, ao mesmo tempo relativo conhecedor da língua estrangeira dos animais (incluído e não incluído àquele regime de alteridade) e figura mais observadora (ouvinte; leitora) que ator participante: “Mas o cocheiro, dando-lhes de rijo na lambada, bradou para mim, que lhe não espantasse os animais. Parece que a lambada deverá ser em mim, se era eu que espantava os animais; mas como dizia o burro da esquerda, ainda agora: - Onde está a justiça deste mundo?”1 A crônica - gênero devedor do ensaio (Starobinski, 2011) - figura no istmo entre o espaço do literário e o da resposta pública da tribuna, passagem em que a assinatura machadiana em grande medida constitui sua autoria a partir de uma relação de conformação e posicionamento crítico com a consolidação estética e ideológica do jornal (Granja, 2018); isto é, em uma relação de “pensar com as mãos”, que, no caso de Machado, também se dá literalmente, no sentido técnico de manipulação e aproveitamento das possibilidades materiais da forma jornalística e do impresso de maneira geral (Süssekind, 2003, Granja, 2018). A crônica parece encenar, desse modo, não apenas uma alegoria sobre o real, ou uma cena paródica da prática filosófica, mas um modo de resposta pelo qual a responsabilidade do literário se constitui em equivocação, ao recuperar uma figura da tradição menipeia - e, com isso, certa reiteração figurativa não literal - e encenar o indecidível do drama contemporâneo a partir do posicionamento antagônico dos burros, em contradicção. Essa encenação elabora com o debate público na medida em que um texto literário pode se valer das possibilidades que o literário sustenta para situar outro modo de entendimento para o problema social (Siscar, 2010); nesse caso, ao figurar a inclusão contraditória e irresoluta da alteridade (inclusa a dificuldade de escuta e de traduzibilidade, isto é, da inscrição de seu sentido preciso), em diálogo com o aproveitamento filosófico, mas distante de sua hierarquização epistemológica. Parte do gesto desse ensaísmo ficcional machadiano pode ser recuperado nas diversas “teorias” descritas, ou brevemente sugeridas, em seus romances e contos, entendidos como exercícios práticos de uma filosofia baixa, de acordo com “a escala das filosofias dos ‘papéis velhos’ e dos ‘epitáfios’ enunciadas por Brás Cubas” (Nunes, 1989, p. 8), defunto autor da “teoria das edições humanas”, vale lembrar. Na ficção de Machado, a pretensão teórica generalizadora costuma vir acompanhada da experiência que possibilitou sua abstração. Por um lado, levando em conta o pressuposto teórico, tudo aquilo que vêm a constituir a narrativa propriamente dita parece ganhar um sentido anexo, como ilustração ou pretexto para a elaboração de uma ideia (algo semelhante a certas narrativas borgeanas, que, de antemão, avisam para o caráter de resumo daquilo que será dito, em proveito “da situação causadora”, segredo que tampouco chega a ser explicitado). Contudo, a natureza da ideia em vias de comprovação apenas ganha sentido porque é extraída de uma determinada experiência singular narrada, que, por sua vez, denuncia contra sua generalidade. O procedimento se desenvolve de maneira sugestiva ao final do “conto-teoria” “O Espelho” (Assis, 1882), por exemplo. Nele, Jacobina, após formular a respeito da duplicidade da alma humana, exemplificada a partir de sua experiência de desidentificação com a própria imagem, sai rapidamente de cena, deixando a plateia atônita (“Quando os outros voltaram a si, o narrador tinha descido as escadas”).2 A suspensão precipitada da narrativa (à revelia do que a tese pareceria confirmar) provoca uma hesitação de sentido entre o caso particular de Jacobina e a ideia geral de uma alma cindida, isto é, institui um jogo de incerteza que explicita o efeito de defasagem entre experiência e tese (pensamento). A suspensão ao fim da proposição do conto dramatiza, portanto, o incabamento de sua proposição, a rasura de seu fim, o qual se estende para além de seu limite, como um dilema que sugere a recusa do desfecho (a necessidade de uma leitura retroativa) e o gesto de retorno crítico ao seu início. Se tal gesto ficcional ensaia uma outra direção possível para a prosa (como elaboração retrógrada e autorreflexiva de seus pontos de origem, na qual se inclui a incerteza de suas proposições), sem, no entanto, reivindicar a possibilidade de deixar de ser prosa, caberia perguntar se o fim do conto ensaiaria o fim do poema? Referências AGAMBEN, Giorgio; BARRENTO, João. Ideia da prosa. Belo Horizonte: Autêntica, 2013. AGAMBEN Giorgio BARRENTO João Ideia da prosa Belo Horizonte Autêntica 2013 ALMAGRO, Berta Guerrero. Montaigne y Borges, escépticos afines. El hombre, la duda, el libro. Cartaphilus, v. 13, p. 81-97, 2015. ALMAGRO Berta Guerrero Montaigne y Borges, escépticos afines. El hombre, la duda, el libro Cartaphilus 13 81 97 2015 ARRIGUCCI JR, Davi. Leitura: entre o fascínio e o pensamento. Série Idéias, v. 13, p. 19-24, 1994. ARRIGUCCI Davi JR Leitura: entre o fascínio e o pensamento Série Idéias 13 19 24 1994 ASSIS, Machado de. O Espelho. 1882. Disponível em: https://machadodeassis.net/texto/o-espelho/28653 . Acesso em: 01/07/2024. ASSIS Machado de O Espelho 1882 Disponível em: https://machadodeassis.net/texto/o-espelho/28653 01/07/2024 ASSIS, Machado de. Bons dias! 1888-1889. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000255.pdf . Acesso em: 01/07/2024. ASSIS Machado de Bons dias! 1888 1889 Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000255.pdf 01/07/2024 BORGES, Jorge Luis. Esse ofício do verso. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. BORGES Jorge Luis Esse ofício do verso São Paulo Companhia das Letras 2019 BORGES, Jorge Luis. Poesia. São Paulo: Companhia das Letras , 2017. BORGES Jorge Luis Poesia São Paulo Companhia das Letras 2017 BORGES, Jorge Luis. O Informe de Brodie. São Paulo: Globo, 1995. BORGES Jorge Luis O Informe de Brodie São Paulo Globo 1995 CARNEIRO, Alexandre Soares. Exercícios espirituais profanos: leitura, ensaio e inspiração poética em Montaigne. Revista Brasileira de História das Religiões, v. 1, n. 3, 2009. CARNEIRO Alexandre Soares Exercícios espirituais profanos: leitura, ensaio e inspiração poética em Montaigne Revista Brasileira de História das Religiões 1 3 2009 DE ASSIS DUARTE, Eduardo. O negro na literatura brasileira. Navegações, v. 6, n. 2, p. 146-153, 2013. DE ASSIS DUARTE Eduardo O negro na literatura brasileira Navegações 6 2 146 153 2013 DERRIDA, Jacques. Essa estranha instituição chamada literatura: uma entrevista com Jacques Derrida. Tradução de Marileide Dias Esqueda. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2014. DERRIDA Jacques Essa estranha instituição chamada literatura: uma entrevista com Jacques Derrida Tradução de Marileide Dias Esqueda Belo Horizonte Editora da UFMG 2014 DUTRA, Paulo. O Machado Significadô(r): literatura na afrodescendência. Machado de Assis em Linha, v. 15, e267023, 2022. DUTRA Paulo O Machado Significadô(r): literatura na afrodescendência Machado de Assis em Linha 15 e267023 2022 EVA, Luiz Antonio Alves. Montaigne: o ensaio como ceticismo. Manuscrito: Revista Internacional de Filosofia, v. 24, n. 2, p. 7-41, 2001. EVA Luiz Antonio Alves Montaigne: o ensaio como ceticismo Manuscrito: Revista Internacional de Filosofia 24 2 7 41 2001 FISCHER, Luís Augusto. Machado e Borges: e outros ensaios sobre Machado de Assis. Porto Alegre: Arquipélago Editorial Ltda, 2016. FISCHER Luís Augusto Machado e Borges: e outros ensaios sobre Machado de Assis Porto Alegre Arquipélago Editorial Ltda 2016 GIMENEZ, Erwin Torralbo. Duas ou três ideias de Carpeaux sobre Machado de Assis: estilo e sociedade. Teresa, n. 20, p. 49-64, 2020. GIMENEZ Erwin Torralbo Duas ou três ideias de Carpeaux sobre Machado de Assis: estilo e sociedade Teresa 20 49 64 2020 GRANJA, Lúcia. Machado de Assis - Antes do livro, o jornal: suporte, mídia e ficção. São Paulo: Editora Unesp Digital, 2018. GRANJA Lúcia Machado de Assis - Antes do livro, o jornal: suporte, mídia e ficção São Paulo Editora Unesp Digital 2018 LOPES, Elisangela Aparecida. Reflexões de dois burros falantes: qual é a moral da história nesta crônica fabular de Machado de Assis? Revista DARANDINA, v. 2, n. 2, 2010. LOPES Elisangela Aparecida Reflexões de dois burros falantes: qual é a moral da história nesta crônica fabular de Machado de Assis? Revista DARANDINA 2 2 2010 MIELE, Umberto Luiz. “El otro duelo”: violência e política em Jorge Luis Borges. Revista Entrecaminos, v. 4, n. 1, p. 128-146, 2020. MIELE Umberto Luiz “El otro duelo”: violência e política em Jorge Luis Borges Revista Entrecaminos 4 1 128 146 2020 MIGUEL-PEREIRA, Lúcia. História da Literatura Brasileira volume XXII-Prosa de Ficção (de 1870 a 1920). São Paulo: Livraria José Olympio Editora, 1973. MIGUEL-PEREIRA Lúcia História da Literatura Brasileira volume XXII-Prosa de Ficção (de 1870 a 1920) São Paulo Livraria José Olympio Editora 1973 MONTAIGNE, Michel de. Ensaios. Tradução de Rosemary Costhek Abílio, 3 volumes, São Paulo: Martins Fontes, 2000/2001. MONTAIGNE Michel de Ensaios Tradução de Rosemary Costhek Abílio 3 São Paulo Martins Fontes 2000 2001 NUNES, Benedito. Machado de Assis e a filosofia. Travessia, n. 19, p. 7-23, 1989. NUNES Benedito Machado de Assis e a filosofia Travessia 19 7 23 1989 STAROBINSKI, Jean. É possível definir o ensaio? Remate de males, v. 31, n. 1-2, p. 13-24, 2011. STAROBINSKI Jean É possível definir o ensaio? Remate de males 31 1-2 13 24 2011 SISCAR, Marcos. Figuras de prosa: a ideia da “prosa” como questão de poesia. O duplo estado da poesia: modernidade e contemporaneidade. Iluminuras, v. 1, p. 29-40, 2015. SISCAR Marcos Figuras de prosa: a ideia da “prosa” como questão de poesia. O duplo estado da poesia: modernidade e contemporaneidade Iluminuras 1 29 40 2015 SISCAR, Marcos. Poesia e crise: ensaios sobre a “crise da poesia” como topos da modernidade. Campinas; Editora da Unicamp, 2010. SISCAR Marcos Poesia e crise: ensaios sobre a “crise da poesia” como topos da modernidade Campinas Editora da Unicamp 2010 SÜSSEKIND, Flora. Machado de Assis e a musa mecânica. In: SUSSEKIND, Flora. Papéis colados. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 2003. p. 199-208. SÜSSEKIND Flora Machado de Assis e a musa mecânica SUSSEKIND Flora Papéis colados Rio de Janeiro Editora da UFRJ 2003 199 208 1 Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000255.pdf. Acesso em: 01/07/2024. 2 Disponível em: https://machadodeassis.net/texto/o-espelho/28653. Acesso em: 01/07/2024. Parecer Final dos Editores Ana Maria Lisboa de Mello, Elena Cristina Palmero González, Rafael Gutierrez Giraldo e Rodrigo Labriola, aprovamos a versão final deste texto para sua publicação.
location_on
Programa de Pos-Graduação em Letras Neolatinas, Faculdade de Letras -UFRJ Av. Horácio Macedo, 2151, Cidade Universitária, CEP 21941-97 - Rio de Janeiro RJ Brasil , - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: alea.ufrj@gmail.com
rss_feed Stay informed of issues for this journal through your RSS reader
Accessibility / Report Error