alea
Alea: Estudos Neolatinos
Alea
1517-106X
1807-0299
Programa de Pos-Graduação em Letras Neolatinas, Faculdade de Letras -UFRJ
Abstract
Starting from a reflection on the voice of the essay in Michel de Montaigne, Filomena Molder and Pascale Quignard, this text confronts the figure of Philomela. The historical investigation of narratives, texts and images around this figure leads to “brushing history against the grain”, in a discussion of the genre of the voice that dialogues with Anne Carson. In this trajectory, essay and poem converge and diverge at porous thresholds.
A-melódica, música
que me falta
e faz
aquém e além da língua o corte:
canto que ecoa mudo
fluxo e fio.
Minha voz é essa falta
que trans
borda:
imagens costuradas
na pele fina
do pensamento.1
Endereçamentos prévios
“Porque era eu, porque era ele”, escreve Michel de Montaigne, referindo-se ao amigo Étienne de La Boétie, já então há muito falecido. Uma troca afetiva e intelectual interrompida apenas pela morte, a herança de amizade como dívida que engaja o amigo sobrevivente e o incita à escrita - estes motivos do ensaio “Da amizade” se entrelaçam, e podem ser lidos como mote, motivação, ou como um endereçamento que atravessa todo o livro de Montaigne. “A nostalgia do entreter-se bate e anima os Ensaios, como um coração”2, diz Pascal Quignard.
Este “eu” que se apresenta na relação a um outro, endereçando-se também “ao leitor”, não é o cogito de Descartes - única certeza e unidade capaz de garantir a existência do mundo e a universalidade do conhecimento por oposição aos erros e incertezas veiculados pelas formas tradicionais de experiência e de saber. Confrontando-se à pluralidade dos “rostos do mundo”, o sujeito que se ensaia na obra de Montaigne não é o que duvida da realidade a sua volta, mas também não é o que está certo de si mesmo e de seu pensamento, e assim pode fundar uma certeza metafísica. Na exploração do que possa vir a ser ou pensar, o “eu” de Montaigne não cessa de colecionar fragmentos de cultura, interessando-se também por tradições antigas ou por costumes de sociedades não-europeias, as quais lhe são estrangeiras.
Ao ler os Ensaios, ouço em silêncio uma voz cheia de ecos, múltipla porque atravessada por outras vozes: citações, crenças, fábulas, costumes, narrativas. É essa voz polifônica de Montaigne que eu gostaria inicialmente de evocar. Seu campo de exploração é a infinita plasticidade humana, sua potência criativa polimorfa. Mas esta voz está também situada numa certa perspectiva, inscreve-se num “rosto do mundo”, e fala de um certo lugar - frágil porque corpóreo, sujeito à morte e ao envelhecimento, mas também socialmente protegido pela nobreza de seu nome, pela riqueza acumulada por seus antepassados, e também, claro, pelos privilégios de seu sexo, entre os quais Montaigne inclui a liberdade intelectual sobre a qual repousa a verdadeira amizade:
quando se trata de amizade, nada intervém senão ela e ela unicamente. A tanto se acrescenta não estarem, em geral, as mulheres em condições de participar de conversas e trocas de ideias, por assim dizer necessárias à prática dessas relações de ordem tão elevada que a amizade cria; a alma delas parece carecer do vigor indispensável para sustentar o abraço apertado desse sentimento de duração ilimitada e que tão fortemente nos une.3
Mas nesta evocação que faço dos Ensaios de Montaigne, ecoa também a lembrança de uma voz feminina, leitora sua: a voz da filósofa e ensaísta portuguesa Maria Filomena Molder:
As afinidades entre o Poema e o projecto dos Ensaios de Montaigne são notáveis, no sentido em que a visão da morte de outrém assinala e altera para sempre a vida e a consciência dela. Montaigne escreve não para ensinar mas para contar, e nesse contar está posta a intenção de pagar uma dívida que ficará sempre por saldar, a não ser naquela sua parte em que um coração se obriga a revelar-se, figurando, contando, pintando, resolução literária que não anestesia o escândalo da morte alheia e o terror da morte própria, mas dá forma comunicativa àquilo que só se conhece por iniciação, o confronto com a nossa própria vida.4
Tive o prazer de conversar algumas vezes com Maria Filomena Molder, e quando a leio também tenho a impressão de ouvir o que Roland Barthes chamava de “grão da voz”. O rigor (e o vigor) erudito de seus ensaios sabe o risco de falar de um lugar situado, e certamente menos garantido do que aquele de Montaigne, um lugar capaz de descortinar uma certa perspectiva sobre os muitos rostos do mundo, deixando-se também atravessar por outras vozes, e muitas vezes endereçando-se. A voz inscrita na prosa teórica de Maria Filomena Molder traz consigo a historicidade de suas polifonias, mas também a dos silêncios que a atravessam e interrompem.
A propósito, aguço os ouvidos para escutar o “motivo secreto” que um de seus ensaios me sussurra. Intitulado “Virginia e Nova Inglaterra”, o texto comenta duas novelas de Melville e foi incluído na coletânea Dia alegre, dia pensante, dias fatais:
Motivo secreto
Tudo segue o seu curso segundo leis que ignoramos, não as férreas, embora a essas tanto faça conhecê-las como não, vencem-nos sempre, mas as outras, as leis que vêm de todos os fios que se cruzam no nosso corpo desde que nascemos, os fios, a água que vem da música do que se viveu e das saudades.5
A passagem se refere à leitura do conto de Melville, o “Paraíso dos Celibatários e o Tártaro das Donzelas”, tradução portuguesa para “Celibate's Paradise and Young Girl's Tartare”. Construído como uma espécie de díptico, o conto, publicado em 1855 na Harper’s New Montly Magazine, contrasta duas narrativas. Na primeira, o narrador é convidado a um jantar num exclusivo clube londrino que reúne nove cavalheiros, “a fraternidade dos Celibatários”, e lhe deixa uma impressão de fartura e de bem-estar burguês, de um gozo tranquilo da vida, da boa mesa, da amizade, da conversa entre pares. Por outro lado, na Nova Inglaterra, a visita a uma fábrica de papel na qual trabalham apenas moças solteiras é apresentada como uma descida aos infernos. Nas vidas das jovens operárias não há nenhum lugar para fruição e deleite. Com a pele azulada pelo frio intenso de espaços sem aquecimento no inverno rigoroso, elas trabalham incessantemente, executando tarefas repetitivas, necessárias à produção industrial de folhas de papel.
Desdobrando seu “motivo secreto”, Maria Filomena opera uma instigante associação entre as duas narrativas, e nos leva às famosas “teses” sobre o conceito de história de Walter Benjamin.
Quantos celibatários terão tido entre as mãos aquelas folhas, quantas terão sido preenchidas pela mão de Herman Melville? Para isto, a lucidez de Walter Benjamin fornece o bom cânone: “Não há documento de cultura que não seja também documento de barbárie.6
Através da voz de Maria Filomena Molder, Walter Benjamin aponta aqui para a necessidade política de nos desviarmos de leituras apologéticas que transformam produções culturais em monumentos intocáveis, reforçando continuidades que legitimam simbolicamente os opressores de hoje. O gênero ensaístico poderia, assim, ser entendido como uma forma de crítica histórica que solapa a empatia com o vencedor em suas leituras do passado.
Para Benjamin, a noção de catástrofe concerne às continuidades históricas estruturais: os passados que não passam, mas ficam se repetindo indefinidamente, estruturalmente. É neste sentido que ele critica a historiografia do século XIX, que faz abstração do ponto de vista do presente na investigação positivista do que “de fato foi”, e confia numa concepção teleológica do progresso que se inscreve na representação moderna do tempo como um continuum homogêneo e vazio.7
Aqueles vencedores que Benjamin temia em 1940 eram os fascistas em seu avanço armado, mas também a massa anônima de seus apoiadores; hoje infelizmente assistimos a novas formas de extremismo de direita que tem na misoginia um de seus pilares de sustentação ideológica. Por isso, indo além da teoria construtiva da história que inerva o texto de Benjamin, escrito em 1940, quero escutar a voz aguda de Maria Filomena Molder: “ao invés dos celibatários, as donzelas azuis não conhecem nenhuma irmandade a não ser a da mudez: a dor arrancou-lhes a língua”,8 sussurra-me, bordando ainda seu motivo secreto no avesso do ensaio sobre o duplo conto de Melville. Na cicatriz destas línguas arrancadas, quantas obras não terão sido erigidas em monumentos de cultura, tornando-se também monumentos à barbárie?
As diversas formas de silenciamento de vozes femininas, os esforços históricos reiterados para confinar as mulheres aos espaços privados, às tarefas repetitivas destinadas à manutenção das condições necessárias ao exercício masculino da palavra pública e política, certamente estão entre as maiores continuidades catastróficas da história. Disso também nos fala outra ensaísta extraordinária, a filóloga e poeta canadense Anne Carson, em seu ensaio intitulado “O gênero do som”:
A loucura e a bruxaria, assim como a bestialidade, são condições que costumam ser associadas ao uso da voz feminina em público, tanto em contextos antigos quanto modernos. Basta pensarmos em quantas personagens do mundo clássico - mitologia, literatura e cultura - são censuradas pelo modo como fazem uso da voz. Há, por exemplo, o gemido desolador das Górgonas, cujo nome deriva da palavra em sânscrito *garg, que significa “uivo gutural animalesco que produz um grande sopro vindo do fundo da garganta até a boca bem aberta”. Há as Erínias, cujas vozes agudas e horrendas são comparadas por Ésquilo aos uivos de um cachorro ou aos gemidos de alguém sendo torturado no inferno (em Eumênides). Há as vozes mortais das sereias e o perigoso ventriloquismo de Helena (na Odisseia), a tagarelice inacreditável de Cassandra (em Agamenon, de Ésquilo) e o barulho assustador de Ártemis ao adentrar na floresta (no Hino homérico a Afrodite). (...) Para não falar da velha Iambe, da lenda de Elêusis, que grita obscenidades e levanta a saia até o alto para mostrar a genitália. Ou do falatório obsessivo da ninfa Eco (filha de Iambe na lenda ateniense), descrita por Sófocles como “a moça que não tinha porta na boca” (no Filoctetes).
Colocar uma porta na boca das mulheres tem sido um importante projeto da cultura patriarcal desde a Antiguidade até os dias presentes. Sua estratégia principal é criar uma associação ideológica do som produzido pelas mulheres com o monstruoso, a desordem e a morte. Veja a descrição a seguir, feita por um dos biógrafos de Gertrude Stein, acerca do som que ela fazia: “Gertrude era ruidosa. Tinha o hábito de gargalhar bem alto. A risada dela era como um bife. Ela adorava bife.”
Essas frases, que confundem de modo engenhoso os planos factual e metafórico, trazem consigo, a meu ver, sinais de puro medo. É o medo que projeta Gertrude Stein para além dos limites de mulher e humana e espécie animal para um tipo de monstruosidade. A analogia “a risada dela era como um bife”, que identifica Gertrude Stein com o gado, é seguida pela declaração “ela adorava bife”, indicando que Gertrude Stein comia carne de gado. Criaturas que comem a própria espécie costumam ser chamadas de canibais e são vistas como anormais.9
Denunciando a confusão deliberada entre os sons agudos produzidos pelas mulheres - ou pelos homens assimilados ao feminino - e a ausência de articulação ou coerência de suas falas - associação reiterada por Aristóteles -, Anne Carson remete às discussões antigas sobre a virtude, eminentemente política, da sophrosyne. Segundo ela, nos homens a noção estava associada ao autocontrole e à autodeterminação moral, mas nas mulheres coincidia com a obediência à orientação masculina, e raramente significava alguma coisa além da castidade, associada ao fato de se manter calada. Neste contexto, a heroína pitagórica Timyche, que corta fora a própria língua para não trair um segredo, é considerada um exemplo de virtude e uma exceção à regra feminina.
Apesar desta referência ao tema da mutilação da língua, não encontramos, entre os muitos textos, clássicos e modernos, mobilizados por Carson, a lenda de Filomela (ou Philomène, na versão da Idade Média francesa), figura que possivelmente também assombra o “motivo secreto” de Maria Filomena Molder.
“Escovar a história à contrapelo” significará aqui, no pequeno recorte deste ensaio, escovar esta estória à contrapelo, numa leitura que é também reescrita - e um modo de aguçar o ouvido para o que não foi “carregado em cortejo”.
Fios entremeados10
Filomela era a filha mais nova do rei de Atenas, sua voz de mel e de lira era célebre em toda a Grécia. Ela vivia na corte do pai entre versos e teares quando Tereu, o bronco rei dos trácios, veio buscá-la a pedido de sua irmã, Procne, com quem era casado. Mas ao invés de conduzir a cunhada até sua casa para uma visita, como prometido, ele a estuprou no caminho, e para impedi-la de gritar, talvez por receio de ver seu crime denunciado, ou quem sabe apenas para roubar-lhe o que não podia ter, cortou sua língua.
Filomela então fez com fios uma outra voz
Ariadne fez de seu fio, confiado à Teseu, a saída do labirinto.
Fiou assim o fim do Minotauro, mas errou
ao confiar em Teseu
que depois a abandonou numa ilha porque temia ficar enredado
na teia de suas tramas.
Penélope desfez do fio
fidelidade
e teceu em vida sua própria mortalha.
Seu ardil de espera e renúncia foi assim muitas vezes louvado.
Recortes comparativos
Filomela, mutilada, fiou e teceu sua história, transformando sua língua perdida num tecido precioso que conseguiu fazer chegar até sua irmã, Procne. Mas sua obra não chegou até nós.
Os vestígios mais antigos desta narrativa remontam a Esopo (2017), mas da fábula em prosa sobrou apenas um fragmento: o diálogo final entre os pássaros nos quais as duas jovens se transformaram. Há ainda o resumo fragmentar de uma tragédia perdida, atribuída a Sófocles e intitulada Tereu, deslocando assim o protagonismo da narrativa. A única versão antiga que chegou completa até nossas mãos foi aquela escrita por Ovídio em suas Metamorfoses. Mas também este texto destaca mais a terrível punição de Tereu, levado a devorar seu próprio filho, do que as violências feitas à Filomela11. Associando a solidariedade e a amizade entre as duas mulheres à loucura, à violência desmedida e crueldade, Ovídio engrossa o coro daquelas representações negativas relacionadas à voz feminina elencadas por Carson - e paradoxalmente, pois sua heroína é muda. O episódio sangrento da vingança das duas irmãs - e não o da mutilação ou o da tecelagem - foi muitas vezes representado em pinturas, sobretudo no período barroco, incluindo por vezes elementos distintivos dos cultos femininos ao deus Baco.
O quadro de Rubens, aqui reproduzido Figura 1, ilustra a torção narrativa que transfere a violência brutal de Tereu para as duas irmãs. O canibalismo - também evocado na caracterização da voz de Gertrude Stein, de acordo com o ensaio de Carson - aparece associado ao infanticídio, clássico desfecho misógino de tantas estórias. As vestes rasgadas das duas mulheres, suas feições desfeitas entre olhos esbugalhados e bocas escancaradas, assim como a presença do tirso - tudo sugere o grito estridente das bacantes em transe vingativo, nada mais parece evocar o estupro e a língua mutilada da princesa ateniense.
Figura 1.
Peter Paul Rubens (1577-1640). Data da pintura: 1636-38. Museo Nacional del Prado, Madri. (reprodução Wikimedia Commons).
Por que o final da história não conduz à morte de Tereu? A justa aniquilação do tirano violento pelos esforços reunidos das duas irmãs - teria sido este o desfecho perdido da fábula? Talvez seja a questão silenciosa - e politicamente subversiva, afinal a morte de um rei pode ser entendida como conquista do poder - que ensaia Artemisia Gentileschi no quadro em que representa a mesma cena Figura 2.
Figura 2.
Artemisia Gentileschi (1593-1653), pintura não datada, Galleria Nazionale della Puglia, Bitonto, Itália. (reprodução Wikimedia Commons).
Na imagem produzida pela pintora, a atitude das duas mulheres é corajosa, firme. Enquanto uma mostra um punhal, em atitude de ameaça, a outra interpõe-se e estende o braço num gesto desafiador - em sua mão uma mancha quase indistinta. Talvez, num primeiro esboço, a sombra ocultasse uma arma e a cabeça - quem sabe? - pode ter sido acrescentada posteriormente, à contragosto, em conformidade com a convenção narrativa pressuposta na encomenda do quadro. Em todo caso, em nítido contraste com a representação de Rubens, no quadro de Artemisia Gentileschi é Tereu que aparece descomposto. Embora empunhe uma espada, ele cobre o próprio rosto num gesto ambíguo - horror ou vergonha? O mais interessante é que a cena toda parece convergir para um detalhe do mobiliário, num canto bastante iluminado, à esquerda do quadro. Aparecendo por baixo da perna de Tereu, o pé esculpido da mesa derrubada pressiona a ornamentação do banco no qual ele se apoia. Um detalhe apenas, mas talvez também um modo de manter alegoricamente em cena a violência do estupro de Filomela.
Como a obra de Artemisia, Philomena, poema medieval anônimo provavelmente de autoria feminina, embora associado ao nome de Chrétien de Troyes, introduz elementos dissonantes no coro das representações misóginas. A narrativa do episódio do estupro, bastante detalhada, descreve os sentimentos e a dor física da vítima: “de ira, de angústia e de dor/muda mais de cem vezes de cor/treme empalidece e sua/e diz que em má hora saiu/ de sua terra amada/para ser assim desonrada”.12 Também lhe confere voz para insultar seu agressor: “Pérfido ignóbil, o que quer fazer? / Pérfido mau, pérfido desmesurado/ Pérfido traidor, pérfido perjuro/ pérfido infame, sem fé nem lei (...)”.13
E é comparativamente significativa a passagem sobre a mutilação da língua. Ao contrário da versão latina, o poema anônimo do século XII não apenas reprova moralmente a ação de Tereu, mas também deixa algum resto de voz à vítima. O contraste entre o fragmento narrativo de Ovídio e sua reescrita na Philomena medieval fala por si:
“Filomela estendia o pescoço,
ao ver a espada,
havia esperado a morte
mas enquanto sua língua indignada invocava
sem parar o pai,
esforçando-se por falar,
Tereu a imobilizou com pinças
e com sua espada bárbara
a cortou.
Enquanto sua raiz
se agitava no fundo da boca
a língua caiu
e, trêmula, murmurava ainda sobre o solo negro de sangue
agitando-se como a cauda de uma serpente mutilada,
palpitava;
e morrendo,
ainda procurava se unir ao resto da pessoa a quem pertencia”14
Diz a verdade quem diz:
“Uma desgraça nunca vem
sem outra que dela advém”
como era de se esperar,
mal veio mal frutificar.
E do primeiro crime, Tereu
outro ainda pior cometeu:
pegou uma faca afiada
e disse a ela: tua língua
da boca será apartada
pra que não possas contar
tua vergonha e desonra,
e esta falta de Tereu
ficará assim bem calada.
Uma desgraça nunca vem
sem outra que dela advém:
tirou-lhe da boca a língua
e cortou
quase a metade.
Que infâmia, duplo crime!
Depois deixou trancada
a moça que não cessava
de chorar, gritar, lamentar.15
Além de conferir voz à protagonista, o poema medieval não se contenta em descrever sua beleza, mas também menciona seus múltiplos dotes e saberes. Letrada e educada, ela demonstra talento para a poesia, para a tapeçaria e para o canto, assim como para diversos jogos e distrações de corte. Em nítido contraste com a brutalidade e a falta de cultura do personagem Tereu, é uma heroína nos moldes do amor cortês e da gaya scienza. Não seria sua língua, perdida e recuperada nos fios narrativos da tapeçaria, uma figuração da estrutura traumática do poema?
Nomear
Recortando ainda estes pré-textos em releitura contemporânea, o ensaísta Pascal Quignard vê na figura da tecelã mutilada a origem mítica da própria escrita literária:
Eis o que é primeiramente escrever. Cortar a língua, não mais poder falar. Filomela fechada na gruta, sem linguagem articulável por meio de sua língua entremeada ao sopro e a seus lábios, se pôs a tecer uma tela que contava de maneira muda a sua história. Eis o que é segundamente escrever. Sempre um terrível calar precede o falar em se calando que se produz longe de todos. Filomela acrescenta enfim esta terceira lição: a escrita é alguma coisa que acreditamos morta mas vive. Em grego filomela se decompõe: a que ama o canto. A literatura ama uma voz que não soa, mas se ouve. É apenas aos olhos do iletrado que a escrita é morta. É apenas aos olhos de Tereu que Filomela é muda.16
Citar é recortar e ampliar, também pode ser uma maneira de ensaiar outra história. Uma coleção de citações tece um novo texto nos entre textos. É inevitável que deixe também alguns fios soltos. Corpus estranho, aparentado à montagem cinematográfica, inscreve-se entre poema e narrativa, mas é sobretudo procedimento ensaístico.
Ensaio a voz inscrita na escrita, ensaio o canto que me custa uma língua - para isto recorto, reescrevo e comparo. Ensaio, enfim, um duplo ou triplo corte do qual extrair (ou no qual bordar) algo como a estrutura traumática do poema lírico. Um recorte de gênero, sim, mas também um recorte no gênero: ensaio um poema com todas estas línguas mutiladas que atravessam (e as vezes entravam) minha própria voz.
Um farfalhar de asas na palavra17
muda
aquém de toda metamorfose,
Adília Lopes diz:
“A minha Musa antes de ser
a minha Musa avisou-me
cantaste sem saber
que cantar custa uma língua
agora vou-te cortar a língua
para aprenderes a cantar
a minha Musa é cruel
mas eu não conheço outra”.18
A barbárie das transmissões cortou aqui e ali partes da história que o poema de Adília subverte e desloca, muitos séculos depois de Ovídio e da voz medieval anônima que se esconde no nome Chrétien de Troyes. Da fábula de Esopo, vestígio ainda mais antigo, sobrou uma conversa entre Procne e Aédona ou Andorinha e Rouxinol, na maioria das traduções. Mas antes de figurar a arte épica dos aedos, Aédona designava um outro pássaro de papo vermelho-sangue e fio frágil de voz num canto entrecortado, o tordo. O corte, anterior ao conto, cindiu o mesmo nome em duas aves.
“Eu hesito, dizia Safo, pois sinto um duplo pensar em mim”.19
Na língua cortada da poeta, uma ausência hesitante
nomeia o corte no canto
o canto no
corte
a musa
na muda.
Filomela
é aquela que ama o canto
como a filósofa,
busca o saber
e a filóloga,
as belas palavras
em seus palimpsestos
Referências:
AUTORIA ANÔNIMA. Philomena (pseudo Chrétien de Troyes). In: AUTORIA ANÔNIMA. Pyrame et Thisbé, Narcisse, Philomena (éd. bilingue d’Emmanuèle Baumgartner). Paris: Folio Classique, 2000. p.154-255
AUTORIA ANÔNIMA
Philomena (pseudo Chrétien de Troyes)
AUTORIA ANÔNIMA
Pyrame et Thisbé, Narcisse, Philomena (éd. bilingue d’Emmanuèle Baumgartner)
Paris
Folio Classique
2000
154
255
BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de História. Organização e tradução de Adalberto Müller e Márcio Seligmann-Silva. São Paulo: Alameda, 2020.
BENJAMIN
Walter
Sobre o conceito de História
Organização e tradução de Adalberto Müller e Márcio Seligmann-Silva
São Paulo
Alameda
2020
CARSON, Anna. O gênero do som. Tradução de Marília Garcia. Revista Serrote, n. 34, 2020.
CARSON
Anna
O gênero do som. Tradução de Marília Garcia
Revista Serrote
34
2020
ESOPO, -. Fábulas, seguidas do Romance de Esopo. Edição e tradução de André Malta, Adriane da Silva Duarte, e outros. São Paulo: Editora 34, 2017.
ESOPO
-
Fábulas, seguidas do Romance de Esopo
Edição e tradução de André Malta, Adriane da Silva Duarte, e outros
São Paulo
Editora 34
2017
FRONTISI-DUCROUX, Françoise. Philomèle et Procne. In: FRONTISI-DUCROUX, Françoise. Ouvrages de dames. Ariane, Hélène, Pénélope... Paris: Seuil, 2009. p.117-154.
FRONTISI-DUCROUX
Françoise
Philomèle et Procne
FRONTISI-DUCROUX
Françoise
Ouvrages de dames. Ariane, Hélène, Pénélope...
Paris
Seuil
2009
117
154
LAVELLE, Patrícia. Sombras Longas. Belo Horizonte: Relicário, 2023
LAVELLE
Patrícia
Sombras Longas
Belo Horizonte
Relicário
2023
LOPES, Adília. Dobra - Poesia reunida. Lisboa: Assírio & Alvim, 2021.
LOPES
Adília
Dobra - Poesia reunida
Lisboa
Assírio & Alvim
2021
MOLDER, Maria Filomena. A diferença entre assistir à morte e exercitar-se na morte. In: MOLDER, Maria Filomena. Cerimónias. Belo Horizonte: Chão da Feira, 2017. p.15-27
MOLDER
Maria Filomena
A diferença entre assistir à morte e exercitar-se na morte
MOLDER
Maria Filomena
Cerimónias
Belo Horizonte
Chão da Feira
2017
15
27
MONTAIGNE, Michel. Ensaios. Tradução de Sergio Milliet. São Paulo: Abril Cultural, 1972. (Coleção Os Pensadores)
MONTAIGNE
Michel
Ensaios
Tradução de Sergio Milliet
São Paulo
Abril Cultural
1972
Coleção Os Pensadores
MOLDER, Maria Filomena. Virgínia e Nova Inglaterra. In: MOLDER, Maria Filomena. Dia alegre, dia pensante, dias fatais. Lisboa: Relógio d’água, 2017. p.112-178
MOLDER
Maria Filomena
Virgínia e Nova Inglaterra
MOLDER
Maria Filomena
Dia alegre, dia pensante, dias fatais
Lisboa
Relógio d’água
2017
112
178
OVÍDIO, -. Metamorfoses. Tradução de Domingos Lucas Dias. São Paulo: Editora 34 , 2017.
OVÍDIO
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Metamorfoses
Tradução de Domingos Lucas Dias
São Paulo
Editora 34
2017
QUIGNARD, Pascal. Alpha. Revue de métaphysique et de morale, n. 79, 2013.
QUIGNARD
Pascal
Alpha
Revue de métaphysique et de morale
79
2013
QUIGNARD, Pascal. La gorge égorgée. In: QUIGNARD, Pascal. Petits traités, t. IV. Paris: Maeght Editions, 1990. p.103-184
QUIGNARD
Pascal
La gorge égorgée
QUIGNARD
Pascal
Petits traités
IV
Paris
Maeght Editions
1990
103
184
SAFO, -. Fragmentos completos. Tradução de Guilherme Gontijo Flores. São Paulo: Editora 34 , 2017.
SAFO
-
Fragmentos completos
Tradução de Guilherme Gontijo Flores
São Paulo
Editora 34
2017
1
Lavelle (2023, p. 49).
2
Quignard (1990, p. 146, tradução minha).
3
Montaigne (1972, p. 97).
4
Molder (2017, p. 16).
5
Molder (2017, p. 112).
6
Molder (2017, p. 128).
7
Remeto a Benjamin (2020), em particular as “teses” IV, V, VI e VII.
8
Molder (2017, p. 127).
9
Carson (2020, p. 117).
10
Lavelle (2023, p. 47-48).
11
Sobre a ausência de descrição ou de representação pictórica da obra de Filomela e sobre a excepcionalidade de seu caráter autobiográfico, quando comparada a outros trabalhos de tecelagem do mundo clássico, como o de Helena ou o de Penélope, cf. Françoise Fronisi-Ducroux (2009), p.123-124.
12
Autoria anônima (2000, p. 212, tradução minha).
13
Idem.
14
Remeto aqui a Ovídio (2017), mas a tradução foi um pouco modificada e “recortada” em versos por mim mesma.
15
Extrato de “Philomena”, de autoria anônima. Tradução minha, realizada com auxílio da tradução em prosa para o francês moderno da editora.
16
Quignard, (2013, p. 295, minha tradução).
17
Lavelle (2023, p. 50).
18
Lopes (2021).
19
Safo (2017, p. 51).
23
Endereçamento Dedico este ensaio à luta das mulheres afegãs, oprimidas pelo regime misógino dos talibãs. Além de terem sido privadas de direitos fundamentais, como estudar ou exercer uma profissão, foram recentemente proibidas de fazer uso de suas vozes em público.
Parecer Final dos Editores
Ana Maria Lisboa de Mello, Elena Cristina Palmero González, Rafael Gutierrez Giraldo e Rodrigo Labriola, aprovamos a versão final deste texto para sua publicação.
Authorship
Patrícia Lavelle
Concepção, projeto, pesquisa bibliográfica, análise e interpretação dos dados
Redação e revisão do manuscrito
Aprovação da versão final do manuscrito para publicação
Responsabilidade por todos os aspectos do trabalho e garantia pela exatidão e integridade de qualquer parte da obra
Patrícia Lavelle
Poeta, professora da PUC-Rio e pesquisadora do CNPq (PQ-2/PDE). Em 2024, foi agraciada com incentivo à criação literária do Centre National du Livre (CNL, França) para escrever Poétique translangue, livro que associa prosa ensaística e poemas. Publicou Walter Benjamin metacrítico: uma poética do pensamento (Relicário, 2022), entre outros livros de ensaios. Em poesia, além de Sombras longas (Relicário edições, 2023), é autora de Bye bye Babel, editado em versões diferentes no Brasil (7Letras, 2ª edição 2021) e na França (Les presses du réel, “Al Dante”, 2023). Integrou antologias de poesia brasileira recentemente publicadas na Colômbia, na França, em Portugal e no Brasil
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, BrasilPontifícia Universidade Católica do Rio de JaneiroBrasilRio de Janeiro, RJ, BrasilPontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
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Programa de Pos-Graduação em Letras Neolatinas, Faculdade de Letras -UFRJAv. Horácio Macedo, 2151, Cidade Universitária, CEP 21941-97 - Rio de Janeiro RJ Brasil , -
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