alea
Alea: Estudos Neolatinos
Alea
1517-106X
1807-0299
Programa de Pos-Graduação em Letras Neolatinas, Faculdade de Letras -UFRJ
Abstract
The aim of this article is to propose a critical reflection on the possible relationships between the essay genre and the so-called “adventure of the proper name”. Using authors such as Giorgio Agamben, W. G. Sebald, Erich Auerbach and Juan Rodolfo Wilcock, the article offers a range of citations and references that have as their central focus the issue of the proper name: firstly, the way in which the proper name as a signifier interferes in the transmission and reading of texts over time; secondly, the way in which the proper name becomes part of the authors’ imaginative panorama.
Gostaria de começar com três epígrafes, que não irão acima, mas junto ao corpo do texto (“introjetadas”, de certa forma). As duas primeiras epígrafes serão retiradas do livro A aventura, publicado em 2015 por Giorgio Agamben. A primeira diz o seguinte: “...se o ser é sempre, nas palavras de Aristóteles, algo que ‘se diz’, então a aventura tem certamente a ver com uma determinada experiência do ser” (Agamben, 2018, p. 38). A segunda: “Aventura e palavra, vida e linguagem se confundem, e o metal que resulta da sua fusão é o do destino” (Agamben, 2018, p. 32). A terceira é a epígrafe que Erich Auerbach coloca em seu livro Dante como poeta do mundo terreno, um fragmento atribuído a Heráclito: “O caráter do homem é o seu destino” (Auerbach, 2022, p. 9).
No caso de Agamben, o nome próprio aparece de forma enviesada e indireta - pode ser interpretado, com certa liberdade, como uma das características ou dos elementos formadores daquilo que ele denomina “ser”. O nome próprio, na perspectiva que procuro apresentar aqui, seria não apenas um dos elementos do “ser”, mas um dos pontos focais mais relevantes daquilo que Agamben chama de “aventura”, ou seja, a transformação da vida corriqueira e não-registrada em algo que passa pela linguagem e pela narração (já que o nome próprio é, por excelência, aquilo que “se diz” e que é, reiteradamente, dito pelos outros).
Na segunda epígrafe, Agamben recorre a uma metáfora: o metal do destino é aquilo que surge da fusão entre “aventura e palavra”. A partir dessa frase geral, gostaria de apresentar algo de específico - precisamente o “nome próprio”, que ajuda a ancorar e dar lastro à ideia de uma relação possível entre “aventura” e “palavra”. A palavra, aqui, é tomada como algo determinante do “destino”: o nome próprio é tanto a aventura quanto o registro de um destino que se dá, simultaneamente, em direção ao futuro e em direção ao passado (a recorrência do nome próprio ao longo da vida do sujeito é um dispositivo de permanente remontagem do passado). O uso que Agamben faz do termo “destino”, por fim, é o que me permite saltar em direção a Erich Auerbach e seu livro sobre Dante, transformando-o no primeiro personagem do meu percurso.
1.
Quando apresentei este texto (que agora recebe um novo nome e se transforma em artigo acadêmico) na PUC, em voz alta, no dia 27 de junho de 2023, uma terça-feira, eu confessei: “Foi só depois de passar o título desta fala aos organizadores que me dei conta como o problema me toca diretamente”. Percebi, diante do título, que meu próprio percurso de escrita é inteiramente dependente desse paradigma do nome próprio, primeiro com Enrique Vila-Matas, depois com Juan Rodolfo Wilcock e, mais recentemente, com Max Sebald (que foi como eu decidi chamar, em voz alta, durante a apresentação, o escritor alemão Winfried Georg Sebald, talvez na esperança de dar certo tom de familiaridade).1
Essa triangulação de autores faz sentido na medida em que, na cristalização dos nomes próprios alheios, ocorre também a cristalização do meu próprio percurso como crítico, professor e pesquisador. Foi a partir de Enrique Vila-Matas que organizei meu primeiro livro, Conversas apócrifas com Enrique Vila-Matas, que se apresenta como um trabalho crítico “criativo”, no qual os procedimentos narrativos do autor são transformados em procedimentos da crítica e do comentário (uma sorte de metamorfose que, de resto, já está presente na própria poética de Vila-Matas, como o livro História abreviada da literatura portátil deixa claro). Foi precisamente em um dos livros de Vila-Matas (Bartleby e companhia) que encontrei o nome de Wilcock pela primeira vez, uma descoberta que permaneceu latente até o momento em que minhas pesquisas me levaram em direção ao contexto italiano na segunda metade do século XX - foi nesse contexto que surgiu meu livro sobre o autor, Wilcock, ficção e arquivo.
Por fim, o terceiro elemento na triangulação: o escritor alemão W. G. Sebald, morto prematuramente em 2001, e que tem ocupado parte da cena da literatura contemporânea ao longo do século XXI. O livro que dediquei a ele, intitulado Estratégias de visualidade na literatura contemporânea: o Olho Sebald, propõe uma leitura transversal de toda sua obra, tomando como ponto central a questão da visualidade - não apenas como o autor Sebald utiliza imagens em seus romances (o traço distintivo de sua poética e também aquele mais frequentemente imitado), mas como seus personagens e narradores colocam em circulação uma intrincada teoria multifacetada da visualidade e da capilaridade dos estímulos visuais.
Conversando sobre essa situação com Rafael Gutierrez Giraldo, editor de meu livro sobre Wilcock, sou presenteado com uma descoberta que, segundo ele, transformará minha perspectiva: a narrativa-ensaio da escritora colombiana Piedad Bonnett sobre o suicídio do filho Daniel, Lo que no tiene nombre, uma investigação sobre as relações entre o nome, a morte, o esquecimento e a persistência dos laços: “Daniel no descansa porque no es. Lo que hacíamos corresponder con ese nombre se ha disuelto, ya no puede experimentar nada” (Bonnett, 2013, p. 28). Algumas páginas adiante, a autora fala de seu fascínio pelos cemitérios, de como sempre visita esses lugares quando vai a uma nova cidade. Se reverencio os cemitérios, ela escreve, por que preferir para Daniel o vento e as cinzas? Por que não a memória “aferrada à pedra na forma de um nome e umas datas”? Talvez porque diante da dor da morte de um filho todas as mistificações literárias carecem de sentido, se desvanecem. As cinzas a fazem pensar na purificação pelo fogo, ao invés da ideia de putrefação evocada pelas tumbas e pelas lápides.
“Aquilo que não tem nome”, eis o título da investigação de Bonnett, que condensa tanto a dimensão “inominável” do sentimento de sobreviver ao filho quanto a dimensão do rompimento da conexão entre nome e carne, entre o significante e a existência: “tudo que correspondia a esse nome se dissolveu”. Pensando a respeito desse vínculo entre o nome e o corpo, ou, mais especificamente, entre o nome e o trecho de vida material reservada a cada corpo, com seus ciclos, agruras e prazeres, me vem à memória a noção de “realismo criatural”, fundamental para pensar uma literatura como a de W. G. Sebald - como defendeu Eric Santner no livro intitulado precisamente Sobre a vida criatural (On Creaturely Life), de 2006, no qual aproxima Sebald de Rilke, Heidegger, Agamben -, e que ocupou Erich Auerbach em algumas passagens-chave de Mimesis.
A aventura do nome é sua capacidade de se prender à mesma criatura, do berço à tumba. Explorando minuciosamente o “cotidiano de Erich Auerbach”, o pathos de sua “travessia terrena”, Hans Ulrich Gumbrecht (1994, p. 91) fala da “surpreendente escassez de documentos e testemunhas”, algo que talvez reflita “uma intenção de Auerbach”; nesse ponto, uma nota de fim apresenta o seguinte aprofundamento: “O significado latino de ‘Clemens’, nome do filho único de Auerbach, parecer ser emblemático da tonalidade dominante da sua vida privada e da forma de apresentar sua obra” (Gumbrecht, 1994, p. 111). Clemens, portanto, “clemente”, que tem clemência; indulgente, bondoso, benigno, sem extremos, suave, afável; talvez ligado à raiz grega cli-nàre, “inclinar”, “pender”, no sentido de “pender à piedade”, de alguém que sabe perdoar as ofensas e é leve nas punições.
Clemens se torna, a partir daí, personagem fundamental para a argumentação do texto de Gumbrecht. No momento dos agradecimentos, por exemplo, uma revelação decisiva, uma cena - ou sucessão de cenas - na qual o nome se liga ao corpo: “Não relativizarei em nada a gratidão que nutro pelos colegas se eu enfatizar, no entanto, que, de longe, a mais relevante contribuição à minha pesquisa consistiu em uma série de longas conversas com Clemens, o filho de Auerbach” (Gumbrecht, 1994, p. 110).
Clemens informa que o pai guardou para si a tensão e a incerteza com relação à possibilidade de serem expulsos da Turquia e, ao mesmo tempo, impedidos de retornar à Alemanha: “Antes de tomar ciência, em 1972, da documentação citada acima, Clemens Auerbach, que em 1937 tinha 14 anos, não sabia que as autoridades do Estado e do Partido na Alemanha estivessem preocupadas com o status legal da permanência de sua família na Turquia após a emigração” (Gumbrecht, 1994, p. 113). O filho dá detalhes também acerca do início da vida profissional do pai, quando se mudam de Berlim para Marburg em 1929 (Auerbach vai para dar aulas, mas mantém o vínculo como funcionário civil para continuar recebendo o salário): “De acordo com Clemens Auerbach, seu pai jamais trabalhou de fato como bibliotecário em Marburg” (Gumbrecht, 1994, p. 114).
E o filho recua ainda mais no tempo, dando detalhes sobre o período de 1911 a 1913, quando o pai estudou Direito em quatro cidades diferentes: “De acordo com Clemens Auerbach, estas etapas foram cumpridas sem quaisquer pressões por parte da família de seu pai. Para aqueles que podem se permitir tal coisa, estas mudanças frequentes de Universidade fariam parte de uma faceta ‘prazerosa’ da vida estudantil” (Gumbrecht, 1994, 115). O significado latino do nome Clemens, portanto, é emblema da tonalidade dominante da vida privada de Erich Auerbach e também da forma de apresentar sua obra. A ideia da tonalidade retorna no final do texto: “Desde o início dos anos 20, a tonalidade dominante na vida de Auerbach também começa a deslocar-se do estilo de um jovem altamente privilegiado para o envolvimento crescente com aqueles rituais de normalidade e cotidianeidade que há muito o haviam fascinado nas obras literárias” (Gumbrecht, 1994, p. 105).
Talvez seja ir muito longe relembrar que Clemens evoca São Clemente, o Papa Clemente I, o quarto Papa da história, atuante de 88 a 97, precisamente naquele período em que ocorre “o trabalho interpretativo mais impressionante”, como escreve Auerbach no primeiro capítulo de Mimesis, ou seja, a reinterpretação da tradição visando a descoberta de uma série de figuras que prognosticam eventos futuros, uma tradição cujo “conteúdo”, a partir dessa intervenção, vai sofrer “durante milênios um desenvolvimento constante e ativo com a vida do homem na Europa”? (Auerbach, 2021, p. 17-18).
Talvez seja ir muito longe relembrar que o santuário principal de São Clemente em Roma é a Basílica de San Clemente al Laterano, cuja “riqueza de elementos arquitetônicos, artísticos e históricos, abarcando o arco de vida [quero chamar a atenção para a expressão] de quase toda a era cristã, a faz um monumento único na história da arte de Roma”, como informa o verbete italiano da Wikipedia? Ou relembrar que a Basília registra em sua materialidade a convivência entre épocas e temporalidades, como um emblema das relações entre figuras e prognósticos, saltos retrospectivos e anacronismos deliberados? No nível mais profundo, uma residência coletiva romana e um templo dedicado a Mitra; no segundo nível, a basílica paleocristã; no terceiro nível, aquele acessível da rua, a basílica medieval.
2.
Em 3 de dezembro de 1967, um domingo, Adolfo Bioy Casares está em Roma e relata em seu diário a visita que faz à Basílica de San Clemente, levado por Juan Rodolfo Wilcock, que o apresenta àquilo que define como “o primeiro monumento da língua italiana” (Bioy Casares, 2021, p. 160). Bioy descreve um afresco no qual figuram homens que transportam uma coluna; compondo a cena, a expressão “fili de le pute” aparece escrita na parede. São afrescos do século XI que mostram um milagre de Clemente: tendo convertido uma mulher, o santo é objeto da ira do marido, que manda seus funcionários prenderem Clemente; por intervenção divina, os funcionários confundem Clemente com uma coluna, que amarram e suspendem. O marido grita: “Puxai, filhos da puta!”. O interessante é que os filhos da puta estão identificados com seus nomes: Gosmario repete a ordem a outro, “Albertel, puxa!”, e este pede ajuda a um terceiro: “Fique atrás com o pau, Carvoncello”. Clemente, suave em sua punição, acompanha a cena de longe e diz em latim: “Pela dureza de seus corações, mereceram carregar pedras”.
Na Basílica de San Clemente, portanto, os filhos da puta têm nome e, com esses nomes e suas exclamações, inscrevem na tradição um monumento à indissociável ligação entre corpo e nome, um monumento à língua vulgar, à vida criatural, e, por que não, à filologia românica. O nome de Clemente continuaria ligado aos monumentos da língua vulgar, com o Papa Clemente VIII, que promulgou em 1592 a versão oficial da Bíblia, a Vulgata Clementina. Clemente VIII, nascido Ippolito Aldobrandini, foi também o responsável pelo julgamento e execução de Giordano Bruno - queimado vivo amarrado a uma estaca, nu e de cabeça para baixo, no Campo de Fiori, em Roma, em 17 de fevereiro de 1600 -, e talvez tenha sido o primeiro Papa a beber café.
Clemens, portanto, não só evoca esse longo processo de tensões e sobreposições, mas funciona também como um informante privilegiado, um ponto de contato entre passado e futuro que permite o resgate de uma série de informações acerca da vida do pai Auerbach. Além disso, Clemens é uma sorte de emissário, de mensageiro, de batedor, já que foi enviado a Harvard na primavera de 1945 para iniciar os estudos (os pais sairão de Istambul em julho de 1947, deixando para trás mobília e porcelanas). No imediato pós-guerra, Auerbach está em contato com o antigo colega Werner Krauss, preocupando-se com sua saúde, com o destino de antigos estudantes, tentando enviar “cigarros turcos, alimentos suíços e medicamentos americanos” (os últimos através da intermediação de Clemens). Como escreve Gumbrecht, “Em 22 de junho de 1946, Auerbach chega ao ponto de confessar seu constrangimento, uma vez que, na difícil situação econômica em que vivia em Istambul, a venda dos bens familiares não gerava recursos suficientes para toda a ajuda concreta que ele desejava oferecer” (Gumbrecht, 1994, p. 109).
Neste ponto, surge um novo personagem, Ernst Robert Curtius, “o maior antagonista de Auerbach dentre os historiadores literários de sua geração” (Gumbrecht, 1994, p. 108), que permanece na Alemanha ao longo de todo o período nazista e da guerra. Gumbrecht cita uma entrevista de Stephen Spender com Curtius, do outono de 1945, na qual Spender identifica uma “paixão pela continuidade” e um “enraizamento no seu ambiente” que talvez pudessem explicar a permanência de Curtius: “Ele pode ter sentido”, continua Spender, “que era sua obrigação, enquanto uma figura apolítica, permanecer na Alemanha, para servir de exemplo aos jovens da continuidade de uma tradição alemã maior e mais sábia”. Gumbrecht vê em Curtius o recurso a “estereótipos bastante abstratos” que preservam “a crença na superioridade da mesma cultura europeia da qual emergiu o Fascismo” (Gumbrecht, 1994, p. 109).
Ernst, portanto, como aquele que ficou, que permaneceu. Ernst, do protogermânico *ernustuz (força, solidez, luta), derivação de *arniz (eficiente, capaz, diligente, seguro), relacionado ao gótico arniba (seguro, certo, rígido). Uma constelação de termos que evocam o zelo, a seriedade, a fixidez.
Em 1953, ano de lançamento da edição estadunidense de Mimesis e também ano em que a universidade de Marburg finalmente oferece um emprego a Auerbach, que recusa, o escritor italiano Umberto Saba começa a escrever o seu primeiro e único romance, que deixará inacabado e que será lançado postumamente em 1975, 18 anos depois da sua morte. Saba e Auerbach, aliás, morrem no mesmo ano, 1957. O romance, intitulado Ernesto, não só é formalmente descosturado, como se passa em Trieste, cidade de trânsito por excelência, convergência de fluxos itálicos, germânicos e eslavos, tendo como tema a formação sentimental de um jovem de 16 anos que descobre seu amor e desejo sexual pelo corpo masculino.
Saba escreve o romance em um dos leitos da clínica psiquiátrica privada Villa Electra, em Roma. Tormentos do corpo e da mente inscrevem no romance sua tonalidade singular, verdadeira “patografia” do pós-guerra. Em carta à filha Linuccia, de 17 de agosto de 1955, Saba fala da saúde prejudicada e da angústia que sente sabendo que deixou coisas incompletas: ele reforça que o original de Ernesto deve ser queimado no momento em que ele der a ordem, e que a filha deve enviar de imediato um telegrama escrito: “Feito” (Prola, 2015, p. 132). Por sorte, quem guardou o original foi Carlo Levi - pintor e escritor, autor de Cristo parou em Eboli -, que não respeitou a vontade do sogro.
Saba define Ernesto “um pouco como um anjo: terno, piedoso, ávido pelos bens da vida”, ou como um “maravilhoso menino”, um “menino deus”, uma espécie de divindade pagã (Prola, 2015, p. 138). Ernesto é um emissário, um mediador, atuando no intervalo entre infância e idade adulta, entre a leveza dos desejos e o peso das obrigações; mas também um batedor que Saba envia em direção ao passado, já que a história se passa em 1898 e utiliza muito material autobiográfico em sua fatura. Ernesto como um anjo-emissário, atuando entre o italiano e o dialeto (já que muitos diálogos são escritos em dialeto triestino), mas cujo nome permite a Saba evitar os nomes angélicos mais tradicionais, como Gabriele, Raffaele ou Michele.
Este último, porém, é matéria-prima fundamental para a emergência de Ernesto, pela via de Michelangelo (Miguel, o anjo): isso porque muitos dos temas do romance de 1953 são desdobramentos das questões postas em 1924 com o volume de sonetos intitulado Os prisioneiros, referência ao ciclo escultórico que Michelangelo projeta para a tumba de Julio II (Prola, 2015, p. 141). Saba apresenta retratos-esculturas, 15 figuras que encarnam 15 qualidades humanas, ligadas a modelos reais, da arte, da literatura, da história (como Petrarca e a melancolia). A leveza de Ernesto - personagem e romance - não seria possível sem essa elaboração poética prévia, mas é possível notar também que o trabalho de Saba em Ernesto, assim como o trabalho de Michelangelo nos Prisioneiros, ficou inacabado, incompleto, vivendo para sempre no intervalo entre esboço e obra. No afável e bondoso anjo-menino inacabado Ernesto sobrevivem os prisioneiros/escravos de Michelangelo.
3.
Em 2013, 60 anos após a escrita de Ernesto, Svetlana Alpers publica seu livro Roof Life, ensaio autobiográfico dividido em cinco capítulos. Logo no início, numa espécie de dedicatória, um nome se destaca pela ausência. Ao longo do livro essa letra “M” aparece muitas vezes, indicando um interlocutor, um companheiro, um colega de trabalho, um homem que serviu de testemunha a vários dos momentos que Alpers registra em seu ensaio. É só na última seção do último capítulo, intitulado Self seen, que o nome Michael aparece inteiro, um momento de revelação e exposição, portanto. O Michael em questão é Michael Baxandall, com quem Alpers publica em 1994 um livro sobre Tiepolo.
Baxandall, que nasceu em 1933 e faleceu em 2008, foi um dos principais historiadores da arte da segunda metade do século XX, tendo ensinado no Instituto Warburg, na Universidade de Londres, além de ter sido curador no Victoria and Albert Museum. Publicou obras influentes não apenas no campo específico da história da arte, mas nas ciências humanas de uma forma geral, tais como Padrões de intenção: a explicação histórica dos quadros, Giotto e os Oradores: as observações dos humanistas italianos sobre pintura e a descoberta da composição pictórica (1350-1450), Sombras e Luzes, O olhar renascente: pintura e experiência social na Itália da Renascença, entre outros.
A revelação do nome próprio (“Michael”) confere peso retrospectivo à tonalidade dominante do livro de Alpers, sua estratégia sutil de encaixar o biográfico no ensaístico e vice-versa. Além disso, é um dos momentos mais tocantes do livro, quando Alpers dá detalhes da intimidade do casal e de uma atividade à qual Baxandall se dedicou nos últimos anos de vida, sofrendo do mal de Parkinson: ele fotografou o próprio corpo reproduzindo as poses de obras de arte, como o célebre tema do Esfolado tal como trabalhado por Cézanne (esse é o único exemplo dado por Alpers, mas gosto de pensar que talvez Michael também tenha feito uma foto como um dos prisioneiros de Michelangelo).
As fotografias foram reunidas em dois álbuns caseiros, que Baxandall intitula A paralisia trêmula 1 e 2. Ele usava os registros visuais do próprio corpo como forma de condensação dos percursos da história pessoal e da história da arte, amalgamando em sua condição de criatura também a dimensão etérea e imaterial do pensamento, do estudo, da reflexão. Ao final da descrição do processo, Alpers apresenta a seguinte reflexão: “É uma performance inesperada da parte de um homem profundamente reservado” (Alpers, 2013, p. 246).
Em certo sentido, a aventura do nome próprio continua, mesmo quando o corpo que corresponde ao nome se dissolve - continua, por exemplo, quando o ensaio se apresenta como uma forma de endereçamento, quando ao final de seu livro Alpers afirma que continua escrevendo “para ele”, depois de dar os detalhes de como Michael Baxandall faleceu no mesmo ano em que Roof Life estava tomando corpo como o ensaio autobiográfico que hoje faz as vezes de obra. Da mesma forma, Piedad Bonnett encerra seu livro com um “envio”, apresentando o nome do filho em uma versão íntima, cotidiana, “Dani”, afirmando que construiu com palavras uma espécie de sobrevida, ou de suplemento, do nome (em suma, sua aventura).
Referências
AGAMBEN, Giorgio. A aventura. Tradução de Cláudio Oliveira. Belo Horizonte: Autêntica, 2018.
AGAMBEN
Giorgio
A aventura
Oliveira
Cláudio
Belo Horizonte
Autêntica
2018
ALPERS, Svetlana. Roof Life. New Haven; Connecticut: Yale University Press, 2013.
ALPERS
Svetlana
Roof Life
New Haven; Connecticut
Yale University Press
2013
AUERBACH, Erich. Dante como poeta do mundo terreno. Tradução de Lenin Bicudo Bárbara. São Paulo: Editora 34, 2022.
AUERBACH
Erich
Dante como poeta do mundo terreno
Bárbara
Lenin Bicudo
São Paulo
Editora 34
2022
AUERBACH, Erich. Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental. Tradução de George Bernard Sperber. São Paulo: Perspectiva, 2021.
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Erich
Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental
Sperber
George Bernard
São Paulo
Perspectiva
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BIOY CASARES, Adolfo. Wilcock. Buenos Aires: Emecé, 2021.
BIOY CASARES
Adolfo
Wilcock
Buenos Aires
Emecé
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BONNETT, Piedad. Lo que no tiene nombre. Bogotá: Alfaguara, 2013.
BONNETT
Piedad
Lo que no tiene nombre
Bogotá
Alfaguara
2013
GUMBRECHT, Hans Ulrich. “Pathos da travessia terrena”: o cotidiano de Erich Auerbach. In: COLÓQUIO UERJ, ERICH AUERBACH, V, 1994, Rio de Janeiro. Anais [...] Rio de Janeiro: Imago Editora, 1994. p. 91-116.
GUMBRECHT
Hans Ulrich
“Pathos da travessia terrena”: o cotidiano de Erich Auerbach
COLÓQUIO UERJ, ERICH AUERBACH, V
1994
Rio de Janeiro
Anais
Rio de Janeiro
Imago Editora
1994
91
116
PROLA, Dario. L’Ernesto, ovvero Il prigione di Umberto Saba. Revista Acta neophilologica, v. 48, n. 1/2, 2015, p. 131-142. http://www.dlib.si/?URN=URN:NBN:SI:doc-I923OU5I. Acesso em: 20 de junho de 2023.
PROLA
Dario
L’Ernesto, ovvero Il prigione di Umberto Saba
Revista Acta neophilologica
48
1/2
2015
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http://www.dlib.si/?URN=URN:NBN:SI:doc-I923OU5I
20 de junho de 2023
SCHÜTTE, Uwe., W. G., Sebald. Leben und literarisches Werk. Berlim ; Boston: de Gruyter, 2020.
SCHÜTTE
Uwe.
W. G.
Sebald
Leben und literarisches Werk. Berlim
Boston
de Gruyter
2020
1
No que diz respeito ao nome próprio, pode ser útil relembrar que Sebald gostava de ser chamado “Max”, afirmando que seu terceiro nome de batismo era, precisamente, “Maximilian”, algo que não era verdade, que não constava em seus registros civis, como provou Uwe Schütte (2020, p. 8). No caso de Sebald, a estratégia de transformação do nome próprio era também uma sorte de “dom” aos colegas, amigos e conhecidos anglófonos (já que ele se estabeleceu na Inglaterra como professor em 1970, aos 26 anos), que acessavam com facilidade a palavra “Max”.
Parecer Final dos Editores
Ana Maria Lisboa de Mello, Elena Cristina Palmero González, Rafael Gutierrez Giraldo e Rodrigo Labriola, aprovamos a versão final deste texto para sua publicação.
Authorship
Kelvin Falcão Klein
Concepção, projeto, pesquisa bibliográfica, análise e interpretação dos dados
Redação e revisão do manuscrito
Aprovação da versão final do manuscrito para publicação
Responsabilidade por todos os aspectos do trabalho e garantia pela exatidão e integridade de qualquer parte da obra
Kelvin Falcão Klein.
Professor de Literatura Comparada na Escola de Letras da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro - UNIRIO, atuando no Programa de Pós-Graduação em História (PPGH) da mesma instituição. Autor de Cartografias da disputa: entre filosofia e literatura (Editora da UFPR, 2023) e Estratégias de visualidade na literatura: o Olho Sebald (Editora da UFMG, 2021).
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, BrasilUniversidade Federal do Estado do Rio de JaneiroBrasilRio de Janeiro, RJ, BrasilUniversidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, BrasilUniversidade Federal do Estado do Rio de JaneiroBrasilRio de Janeiro, RJ, BrasilUniversidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
Programa de Pos-Graduação em Letras Neolatinas, Faculdade de Letras -UFRJAv. Horácio Macedo, 2151, Cidade Universitária, CEP 21941-97 - Rio de Janeiro RJ Brasil , -
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Brazil E-mail: alea.ufrj@gmail.com
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