alea
Alea: Estudos Neolatinos
Alea
1517-106X
1807-0299
Programa de Pos-Graduação em Letras Neolatinas, Faculdade de Letras -UFRJ
Abstract
This is an essayistic attempt to respond to a fetish common to essays and poetry: the flesh of language. If the hiatus between two bodies is a fundamental aspect of desire, poetry and essays are often driven by the cunning urge to establish erotic gaps within the flesh of sentences and verses, fraying the accustomed weave of words. With a keen awareness of the ruses of body and language, we aim to explore the abysses between one flesh and another, writing both against and alongside the void that separates them. Across ten sections, this essay collects pieces of essays and poems from a diverse array of authors-ranging from Georges Bataille to Lydia Davis, from Roberto Corrêa dos Santos to Adília Lopes-responding to their works with movements akin to those aroused by the risk of erotic experience: frights, ellipses, jolts.
Este ensaio atenta a um fetiche comum ao ensaio e à poesia - a carne da língua. Se o desejo nasce de um hiato entre as carnes de um eu e de um tu, ensaio e poesia rendem-se amiúde à pulsão de cultuar a carnadura das frases e dos versos. O fetiche, nesse caso, acende hiatos eróticos ali onde o hábito da língua faz supor continuidades tranquilas. Trata-se sempre de recordar o que corpos e palavras têm em comum: “As palavras têm beiras. Você também”1, resume a poeta e ensaísta Anne Carson (1986, p. 35), alguém que soube lembrar que é no perigo das beiras que o desejo se impõe. Este ensaio, portanto, explora, no corpo e na linguagem, os abismos entre uma carne e outra carne; escreve contra e com o espaço entre essas carnes; persegue e rechaça esses hiatos. É feito de “avanços que são quase escorregões, lógicas de saltos e de ricochetes”, como formulou Jean-Christophe Bailly (2017, p. 12-13). Distribui-se em dez seções, as quais se encadeiam por picadas.
Quanto ao começo
Um ensaio começaria a partir do momento em que não desse mais o sentido, mas os desejos das palavras.2 Um ensaio começa por seguir desejos - e por lançá-los. Começa quase como algo que paira, quase sem começar, não fosse esta beleza: a dos começos. Um ensaio começa como um amor começa, persegue como um amor persegue. Um ensaio fareja como dizer o que pensa, enquanto nem entende o que pensa, pois só passa a entendê-lo quando uma frase ajuda. Uma frase tira um ensaio para dançar. O ensaio concede e começa. O esforço de escrever e o esforço de pensar duelam, ensejam transfusões de forças, de elipses. Um ensaio carrega excitantes e é carregado por um obsessor (como se por um feitiço). Um ensaio começa pelo feitiço. Começa: quer atirar-se ao chão como vidro, gravitar rente como poeira, esfacelar. Um ensaio entende que cortar é exercer a tirania de fazer tudo sentir. Quer alargar e conectar, dutos e o que vaza de dutos. Um ensaio não quer transigir com nenhum muro entre a vontade e a hesitação, a asma e o atletismo, o disperso e o exato, o naco e a planície. Não quer transigir. Trança a volúpia fetichista de olhar muito de perto uma coisa e a volúpia maníaca de olhar muita coisa. Um ensaio olha. Um ensaio faz o que olha. E olha com força, amor e medo (como se olhasse um abismo). Um ensaio não quer se haver com um ensaio, mas com uma frase: uma, depois outra, depois outra, depois outra. Um ensaio é a consequência de um farejar inconsequente, obstinado, multidirecional. De um focinhar com apetite de avanços e capturas. Um ensaio responde ao ímpeto de focinhar, metendo o focinho na vida das carnes.
Quanto à vida das carnes
“A carne realmente fustigou todos os meus instintos”, disse Francis Bacon (apudMaubert, 2010, p. 30). De fato, para ele, a carne é um obsessor. Ela toma tudo, em tudo se inscreve: até a paisagem é de carne - mesmo quando ele tenta pintar a areia. Uma duna, por exemplo, queria ser duna, mas a carne assaltou o pincel, o pintor, a tinta, a tela e a própria índole arenosa de uma duna. Isto é: na pintura em que uma duna se esparrama para fora de um cubo, não há areia. É uma duna de carne.3
Nos seus trabalhos, há pescoços que gritam, joelhos penetráveis, corpo-nó, chão de carne, rosto-chaga e carne humana ao ponto para mal. Há corpos abertos, desossados, retorcidos, vértebras fugindo de carnes e amantes enroscados como cortes empilhados no açougue.
É um instinto, uma intuição que me leva a pintar a carne do homem como se ela se espalhasse para fora do corpo, como se ela fosse sua própria sombra. Vejo-a dessa maneira. O instinto está misturado à vida. Tento aproximar o objeto o mais perto de mim e gosto desse confronto com a carne, essa verdadeira escoriação da vida em estado bruto. (Bacon apudMaubert, 2010, p. 31).
A carne não transige com o corpo, em suma. Bem ao contrário, verte-se para além dele, escorre e o assombra. Em Bacon, a sombra não está só fora do corpo, pois é carne; a carne já não cabe no corpo, pois é sombra. Ao não se contentar com o perímetro que lhe foi designado, a carne desce enfim para assombrá-lo.
Para assombrá-lo, talvez, à maneira daquele verso de Ésquilo que obcecou o pintor: “O cheiro do sangue humano não desgruda seus olhos de mim” (apudMaubert, 2010, p. 8).4 Convém pôr esse verso em contato com um momento de Autobiografia do vermelho, livro em que Anne Carson imagina uma história de amor entre Héracles, o herói da mitologia grega, e Gerião, o monstro vermelho por ele derrotado. Eis o contexto: muito tempo depois do amor, eles se reencontram, por acaso; Héracles está namorando Ancash, isto é, outro rapaz; há ainda mil cabos invisíveis de alta tensão entre os antigos amantes; e Gerião ferve, ou quase. “O olhar de Héracles / sobre ele era como uma língua de ouro. Magma subindo” (Carson, 2021, p. 134). Gerião parece ter conseguido aguentar a temperatura e desviar o seu olhar, mas “o esforço que lhe custou arrancar-se / do olhar de Héracles / poderia ter sido medido na escala criada por Richter” (Carson, 2021, p. 181). Olhar de volta é quase uma escolha, mas nada se pode fazer quanto ao que criam, em seus espessos trajetos, esses olhos vindos de fora, indispostos a piscar.
“Os olhos humanos não suportam o Sol nem o coito, nem o cadáver, nem a escuridão, embora com reações diferentes”, segundo Georges Bataille (2007, p. 50). Sob o olhar vidrado do cheiro do sangue humano, Bacon, em resposta, parece carnificar tudo aquilo que os olhos não suportam, tornando tudo ainda menos suportável, forçando novos olhos, exigindo ser olhado menos por olhos do que por um desejo - o desejo de olhos ativos como ventosas. Na esteira de Bataille, Bacon só se interessa pelo que ameaça a estabilidade da visão, pelo que faz desmoronar aquela calma domiciliada de quem tem uma pálpebra a que recorrer. Bacon e Bataille se interessam justamente pelo que incide sobre o olho a ponto de ele se esquecer de sua pálpebra. O sacrifício é um exemplo disso: “[é] geralmente próprio ao sacrifício fazer concordar a vida e a morte, dar à morte o jorro da vida, à vida o peso, a vertigem e a abertura da morte. É a vida misturada com a morte, mas nele, no mesmo instante, a morte é signo de vida, abertura ao ilimitado” (Bataille, 2013, p. 115).
As forças que Bacon conjura com suas tintas trazem esse jorro vertiginoso do sacrifício. E, aqui, não se trata apenas de sacrificar o tema, gesto que Bataille percebe em Édouard Manet, por exemplo.5 Bacon se encontra um tanto mais afogado na lógica sacrificial; empilha, quadro a quadro, todo um feixe de sacrifícios: do tema, sim, e da carne, da figura, da tela, do olho, da tinta... Tudo em nome da pletora infinita que ele parece perseguir - ou da pletora infinita que parece persegui-lo, sem jamais desviar seus olhos. Seja como for, “[o] que o ato de amor e o sacrifício revelam é a carne. [...] A carne é em nós esse excesso que se opõe à lei da decência” (Bataille, 2013, p. 116, grifos do autor).
Sim, a carne é nosso excesso e rota de fuga da decência. Não se pode lançar nenhuma tampa suficientemente encaixável à carne, mas, mesmo assim, a vida ordenada enfileira uma sucessão de tentativas, e o erotismo é o acesso pelo qual passamos para recusá-las. No amor e no sacrifício, ambos atos eróticos, o venerável é uma carne aberta; no amor, também é uma carne aberta que venera. Aliás, a carne é o território onde podem se confundir as posições - sacrificantes, vítimas, deuses, tanto faz.
Quanto a uma carne
O que assombra este ensaio é uma carne, a carne da língua. O que assombra este ensaio: o fetiche dirigido à carne da língua. Isso leva a repetir: o ensaio não quer se haver com o ensaio, mas com a frase. E afirmar: o poema não quer se haver com o poema, mas com o verso. O ensaio é um pretexto para a frase, e o poema é um pretexto para o verso. No melhor cenário, nem a frase de um ensaio nem o verso de um poema querem falar: o desejo se impõe antes que a linguagem se articule demais. O desejo se impõe, envenena a linguagem, degola o discurso, entrona o fetiche.
Quanto ao fetiche
Roland Barthes pondera:
Por que não conceber (um dia) uma “linguística” do valor - não mais no sentido saussuriano [...], mas no sentido quase moral, guerreiro - ou, ainda, erótico? As palavras-valores (os vocábulos) colocam o desejo no texto (no tecido da enunciação) - e fazem-no sair dele: o desejo não está no texto pelas palavras que o “representam”, que o relatam, mas por palavras suficientemente distintas, suficientemente brilhantes, triunfantes, para se fazerem amar, à maneira de fetiches. (Barthes, 2012, p. 313-314).
Essa ponderação está em um texto sobre Bataille, que já disse: “[o] que realmente amamos, amamos sobretudo na vergonha, e desafio qualquer amador de pintura a amar uma tela tanto quanto um fetichista ama um sapato” (Bataille, 2018, p. 250). De fato, o amor de um amador de pintura não chega nem perto do amor de um fetichista por um sapato - e o sapato é a véspera do pé, e o pé é o mundo do fetichista -, mas o poeta, sob o signo do fetiche, gostaria de carnear a palavra como o fetichista acaricia o pé.
O fetichista prescinde de si mesmo, ou nem existe. Se existe, está enfeitiçado. O que decerto existe é o percurso: o fetiche. Para existir, o fetichista só precisa de seu objeto. “E eu gosto tanto dela que não sei como a desejar”, ele quase poderia dizer, com Alberto Caeiro (2016), embora não: o fetichista nunca passou pelo gostar - venera, de saída; ele sabe desejar. Elege o desejo como seu caminho, pois o desejo: limita a dilaceração, envolvendo-a com uma cerca quase acolchoada; comporta mesmo assim muita eletricidade. O fetichista se deleita com adorar e adorar, chegar perto, ensaiar um toque imperfeito e desistir, ensaiar um toque mais exato e insistir, manejar o objeto sem violá-lo, espantar todo toque inexato ou sem vertigem.
*
Roberto Corrêa dos Santos escreveu um pequeno livro, Naco, feito pelo empilhar sucessivo de uma frase sobre outra frase e sobre outra, a fim de exercer e exercer e exercer o seu fetiche. Ele diz - ou pede: “Não mais ir direto aos ‘fins’: deter-se no processo, nas vias, nos prolongamentos, nos jogos” (Santos, 2009). E continua:
Escrever-construir-pensar [...] pode ser - em ato - o próprio fetiche; fetiche quase de todo independente do que venha a ser feito. Pois escrever-em-arte - frise-se: efetivamente escrever - já significa ir em desrumo, ser tomado por versidades, deslocando-se para experimentar os êxtases e as inestimáveis alegres dores solicitadas a-quem. (Santos, 2009, grifos do autor).
Uma vez que o fetiche se impõe sob o signo da desmesura e do descarrilhamento, raptando o fetichista do mundo, tomando-o para si, o autor deu a melhor solução para encerrar esse livro, ou a única solução.
Multiplicar os fetiches, saltar sobre a pobreza e nadar no líquido ouro de suas verdades: curar-se valendo-se do fetiche da forma e do informe, de seus avessos, diagramas, esquemas, gráficos - retorcendo-se à carnadura das línguas. Foder. Foder a letra. Trepar. Trepar com a letra. Trepar. Trep (Santos, 2009).
Quanto a trepar, ou quase
Eis o desejo segundo Bataille.
No momento de dar o passo, o desejo nos lança fora de nós, não podemos mais, o movimento que nos leva exigiria que nos quebrássemos. [...] Como é doce permanecer no desejo de exceder, sem ir até o fim, sem dar o passo. Como é doce permanecer longamente diante do objeto desse desejo, mantermo-nos em vida no desejo, em vez de morrer indo até o fim, cedendo ao excesso de violência do desejo. Sabemos que a posse desse objeto que nos queima é impossível. Das duas, uma: o desejo nos consumirá ou seu objeto cessará de nos queimar. Só o possuímos sob uma condição: que pouco a pouco o desejo que ele nos provoca se apazigue. (Bataille, 2013, p. 166).
É uma definição precisa. Somos seres descontínuos e vivemos ansiando pela continuidade da morte - ou da morte que se apresenta na forma de erotismo: no ato erótico, acessamos por uma nesga essa tão desejada continuidade. Trata-se de uma pequena morte, muito a propósito. Se “o domínio do erotismo é o domínio da violência, o domínio da violação” (Bataille, 2013, p. 40), sob cujas bênçãos borramos todos os limites, o domínio do desejo parece ser o domínio do violável; mais exatamente, o elétrico domínio do possível, de um limite sempre ultrapassável e por isso tão vivo. O desejo contém toda a lonjura, mas também é proximidade voltaica, distendida, e - mesmo quando não - habita o milímetro. Instala-se ali, naquele espaço que uma carne gostaria de ocupar, faz-se mínimo pavio. Quanto menor a distância entre a carne que deseja e a carne desejada, menor e menos apagável o pavio, embora mais e mais à beira de apagar.
Eis o sexy segundo Roland Barthes.
[...] o “sexy” dum corpo (que não é a sua beleza) resulta de ser possível marear (fantasmar) nele a prática amorosa à qual o submetemos em pensamento (tenho precisamente a ideia desta e não de qualquer outra). Do mesmo modo se diria que há, bem distintas no texto, frases “sexy”: frases perturbadoras pelo seu próprio isolamento, como se tivessem em si a promessa que a nós, leitores, é feita duma prática linguageira, como se fôssemos procurá-las em virtude dum gozo que sabe o que quer. (Barthes, 2009, grifo do autor).
É uma definição precisa. O sexy de um corpo, o sexy de uma frase... imantam. Eletrizam o vão entre uma carne e outra, tornam o vão uma promessa elétrica, um pacto do possível. Isto é: diante de uma carne reluzente, o erotismo torna-se possível; diante de uma frase reluzente, a carne da língua torna-se infinitamente erotizável.
Quanto ao erotismo
O erotismo convida o corpo a exorbitar e quando o corpo se exorbita é a carne que se dilata: a carne é o que exorbita o corpo, e um corpo exorbitado é todo carne. Toda a carne, agora imensa, é laboratório da exorbitância. Método exorbitante: inalar, depois seguir, o cheiro do abismo. É a única saída para a carne; ela precisa do abismo. O abismo parece uma charmosa armadilha de caça, uma piscina aquecida ou um buraco negro. A carne diz sim - mas não dá tempo de dizê-lo.
Quanto ao sim
Bataille pensou abismos (n’O erotismo) mas não o fez sem antes ter pensado com eles, enquanto neles se jogava (n’A experiência interior). Talvez só se possa mesmo pensá-los depois de despencar: muitos se dispõem a inalar o cheiro de um abismo, mas escrevê-lo só se dá a quem topar segui-lo. E nunca um vão é tão arisco como aqui. Por um nada a fenda some, só se abre com a queda. Haja fôlego para ceder - e não domar, não pactuar, não arrefecer. Um vão arisco exige amor e atletismo no despencar. Pede um cair ativo, em forma de Sim. Sim, abismo: venha, vou.
“É quando desfaleço que salto” (Bataille, 2016, p. 197), a propósito, e “toda a operação do erotismo quer atingir o ser [...] no ponto em que o coração desfalece” (Bataille, 2013, p. 41). Um coração a desfalecer é só um carnoso músculo a ceder. Ele tentou tudo, tudo apostou na queda e enfim caiu. Cai-se num corpo, numa paixão, num deus, e em todo percurso surge sempre o hiato. O erotismo depende de um venerável hiato, tanto quanto de uma vontade sôfrega de suprimi-lo.
Esse hiato, diz Bataille, assume múltiplas feições. No erotismo dos corpos, é o quilométrico milímetro entre uma carne e outra carne, quilométrica e palpável aflição. No erotismo dos corações, por vezes mais violento, o tempo é quilométrico - quanto tempo se aguenta sentir isto? Quanto tempo até a resposta, quanto tempo até o encontro? Por quanto tempo pode a vida tolerar tanta desordem? Todo lonjuras temporais, esse erotismo. Já no erotismo sagrado, o hiato, mais que quilométrico, é mesmo imponderável, nem se sabe do que é feito, e talvez só se possa intuí-lo, extasiá-lo.
É o caso de dizer: no trato erótico com a língua, um modo de manter-se em vida no desejo é perseguir uma escrita que ceda aos hiatos, talvez, e os multiplique. Condicionar essa escrita para que ela persiga, busque, caminhe, sem ponto de chegada, na direção do inacabado.
Quanto ao inacabado
“Fragmentário ou inacabado: Barthes, Joubert, Hölderlin, Mallarmé, Flaubert” é um ensaio de Lydia Davis. Esse ensaio é um elogio da elipse. A elipse é uma tradução do desejo. A elipse é um sintoma do amor.
Se captarmos apenas um pouco do objecto sobre o qual escrevemos, ou se o fizermos mal, desajeitadamente, incoerentemente, talvez cheguemos a não o destruir. Conseguimos escrever sobre ele, somos capazes de escrevê-lo, e permitimos que continue a viver, permitimos que viva nas nossas elipses, nos nossos silêncios. (Davis, 2021, p. 206).
O inacabado possibilita uma escrita refratária a coagulações - e, mesmo quando não diz muito, parece seduzir todo o dizível. O inacabado abre; o inacabado deseja; o inacabado desconhece a pausa e não quer jamais conhecê-la. Proteiforme, multidirecional, o inacabado sabe fingir pausas, sim, mas essa é só mais uma das suas manhas. E cada manha disfarça ou expõe de um jeito novo a sua volúpia. Se o acabado é a língua que repousa, satisfeita, o inacabado é a língua a se mover, insaciável.
Quanto ao insaciável
“Poesia é o nome da chance dada a um leitor”, diz Christian Prigent (2017, p. 19, grifo do autor). Poesia também é o nome dado à imensa tara da língua. Poesia não aguenta mais língua. Mesmo assim, quer mais: pede mais, mais língua. Poesia é o jeito mais asmático e por isso mais exato de percorrer, desejar, venerar, profanar, estremecer, violar, transtornar, enervar a língua. Poesia é a possibilidade de trançar na língua o inventar e o carnear, ou é o sonho de trançar várias compridas línguas para dizer um breve verso, tanto melhor quanto mais afiado, tanto mais preciso quanto mais cego. Poesia - descompassar a palavra, ou ralar a língua que tenta dizê-la. Herberto Helder:
a vida inteira para fundar um poema,
a pulso,
um só, arterial, com abrasadura,
que ao dizê-lo os dentes firam a língua,
que o idioma se fira na boca inábil que o diga,
só quase pressentimento fonético,
filológico,
mas que atenção, paixão, alumiação.
(Helder, 2014, p. 611).
Experimentar uma língua assim pressupõe a difícil decisão de demolir qualquer caminho de volta para uma língua conformada. Pressupõe a difícil disponibilidade a sentir uma língua mais atiçada pelo desejo de um sopro-grito indecomponível do que pela delícia de dizer uma palavra. Não se trata, então, de procurar uma língua que nos ajude a dizer melhor. Trata-se, talvez, de farejar essa língua que nos ensine a gritar, balbuciar, gaguejar, gemer - mais, melhor.
Sem dúvida, há um esforço de se esquivar da expressão. Sem dúvida, há esforço: um esforço de vibrar a língua, tentar uma língua infinitamente mais interessada na gastança erótica das palavras do que em sua preservação, ou sua dominação.
Quanto à gastança erótica das palavras
Ghérasim Luca quer uma “poesia sem língua” (Luca apudErber, 2012, p. 112). Sim, é um sonho, mas o poema desce quente e toma tudo, como uma língua de lava. É do feitio da lava - escapar, incinerando. Não pactuar. Também o poema é um calor que não transige com a boca. O poema é eclipsado por suas consequências, e se movimenta, talvez, como uma paixão que se desgarra de sua causa. Simone Brantes:
A paixão perde o vínculo de sua causa
na estrada só os carros existem e o volante
cedendo fácil ao braço
os olhos afundando no retrovisor
Não há nenhum propósito exceto o combustível
queimar a gasolina, o óleo diesel
todo o gás
até que não sobre nada
e o carro uma vez mais pare
vazio
exausto na pista.
(Brantes, 2016).
A poesia pode acender o imperativo de se lançar a uma língua aparentada da lava e ainda esturricá-la, explodir o termostato. Ou cavar numa língua dez abismos e se atirar cada um. Ou amar uma língua nascer com ela, tremer e queimar com ela, ou desejar cortá-la e então cortar.
*
Bataille afirma se aproximar da poesia, mas para perdê-la (Bataille, 2015). E se interessa pelo brilho da poesia na medida em que ele se traduz no seu fracasso: o fracasso, afinal, exalta o impossível. “O brilho da poesia se revela fora dos belos momentos que atinge: comparada ao fracasso da poesia, a poesia rasteja.” (Bataille, 2015, p. 329). A poesia expõe sua debilidade, se comparada ao fracasso da poesia: a poesia repousa, quando consegue; o fracasso é não aguentar mais e então sucumbir. O fracasso vem quando se empenha tudo, tudo se leva ao limite, traçando a impossível rota jamais cumprida, pois o êxtase só faz extraviar. “A poesia foi um simples desvio: escapei por ela do mundo do discurso, transformado para mim no mundo natural, eu entrei com ela em um tipo de tumba onde o infinito do possível nascia da morte do mundo lógico.” (Bataille, 2015, p. 325).
É claro que esse extático amor de Bataille à poesia, disfarçável de ódio, lembra o sacrifício. Já foi dito, e é o caso de repetir: a poesia é uma chance; mais ainda, a poesia é esta suprema chance a que podemos nos lançar: executar o sacrifício das palavras. Desnecessário dizer, mas digo: nesse rito, a língua é tanto a deusa a quem se sacrifica quanto o lugar onde o sacrifício ocorre.
Da poesia, direi agora que ela é [...] o sacrifício em que as palavras são vítimas. As palavras, nós as utilizamos, fazemos delas os instrumentos de atos úteis. Nada teríamos de humano se a linguagem em nós tivesse de ser inteiramente servil. Tampouco podemos prescindir das relações eficazes que as palavras introduzem entre os homens e as coisas. Mas nós as arrancamos dessas relações num delírio. (Bataille, 2016, p. 176).
Movendo a poesia sob o peso de um delírio, é possível sacrificar as palavras, sim, e, mais ainda, sacrificar a própria língua. Isso se não a cortarem antes. Em todo caso, se a cortam, é para ensinar a cantar. Cantar para perder a língua, para aprender a cantar, para cantar sem língua, para saber cantar. Aprender com Adília Lopes, que cantou sem saber que cantar custava uma língua.
A minha Musa antes de ser
a minha Musa avisou-me
cantaste sem saber
que cantar custa uma língua
agora vou-te cortar a língua
para aprenderes a cantar
a minha Musa é cruel
mas eu não conheço outra.
(Lopes, 2014).
Cantar custa uma língua: corta-se a língua para cantar. Mas também há alternativas menos hemorrágicas. Você pode olhar uma língua até tremer, vibrar uma língua até cair, amar uma língua até perder, guardar uma língua até lançar, tentar uma língua até ceder, dentar uma língua até dizer, cavar uma língua até ferir, pensar uma língua até ferver, regar uma língua até verter, mover uma língua até criar, usar uma língua até nascer. Pode imaginar uma língua que não mora na boca, mas no topo da cabeça, uma língua incapaz de viver sem outras línguas. Imaginar uma espécie de Medusa que ostenta línguas em vez de serpentes. Imaginar cada língua dessa cabeça com sua própria cabeleira de línguas, e cada uma dessas línguas com suas próprias, até o infinito. Imaginar essa monstruosa vertigem mucosa, essa comunidade infinita. Como olharia um rosto emoldurado por tanta língua? Olhar esse hipnótico, mucoso abismo. Arrancar, então, cada língua, para amarrá-las todas numa nova vida: um buquê de línguas. Ofertá-lo. Com um pano para estancar.
Referências
BAILLY, Jean-Christophe. Ensaio, escrita extensível. In: BAILLY, Jean-Christophe. O ensaio e a anedota. Tradução de Leda Cartum e Laura Erber. Rio de Janeiro: Zazie Edições, 2017. p. 5-23.
BAILLY
Jean-Christophe
Ensaio, escrita extensível
In: BAILLY
Jean-Christophe
O ensaio e a anedota
Tradução de Leda Cartum e Laura Erber
Rio de Janeiro
Zazie Edições
2017
5
23
BARTHES, Roland. O “sexy”. In: BARTHES, Roland. Roland Barthes por Roland Barthes. Tradução de Jorge Constante Pereira e Isabel Gonçalves. Lisboa: Edições 70, 2009. p. 201.
BARTHES
Roland
O “sexy”
BARTHES
Roland
Roland Barthes por Roland Barthes
Tradução de Jorge Constante Pereira e Isabel Gonçalves
Lisboa
Edições 70
2009
201
BARTHES, Roland. As saídas do texto. In: BARTHES, Roland. O rumor da língua. Tradução de Mario Laranjeira. São Paulo: Martins Fontes, 2012. p. 300-314.
BARTHES
Roland
As saídas do texto
BARTHES
Roland
O rumor da língua
Tradução de Mario Laranjeira
São Paulo
Martins Fontes
2012
300
314.
BATAILLE, Georges. O ânus solar (e outros textos do Sol). Tradução de Aníbal Fernandes. Lisboa: Assírio & Alvim, 2007.
BATAILLE
Georges
O ânus solar (e outros textos do Sol)
Tradução de Aníbal Fernandes
Lisboa
Assírio & Alvim
2007
BATAILLE, Georges. O erotismo. Tradução de Fernando Scheibe. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013.
BATAILLE
Georges
O erotismo
Tradução de Fernando Scheibe
Belo Horizonte
Autêntica Editora
2013
BATAILLE, Georges. Poemas. Organização e tradução de Alexandre Rodrigues da Costa e Vera Casa Nova. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2015.
BATAILLE
Georges
Poemas
Organização e tradução de Alexandre Rodrigues da Costa e Vera Casa Nova
Belo Horizonte
Editora da UFMG
2015
BATAILLE, Georges. A experiência interior, seguida de Método de meditação e Postscriptum 1953: Suma ateológica, v. I. Tradução de Fernando Scheibe. Belo Horizonte: Autêntica Editora , 2016.
BATAILLE
Georges
A experiência interior, seguida de Método de meditação e Postscriptum 1953: Suma ateológica
I
Tradução de Fernando Scheibe
Belo Horizonte
Autêntica Editora
2016
BATAILLE, Georges. Documents. Tradução de João Camillo Penna e Marcelo Jacques de Moraes. Florianópolis: Cultura e Barbárie, 2018.
BATAILLE
Georges
Documents
Tradução de João Camillo Penna e Marcelo Jacques de Moraes
Florianópolis
Cultura e Barbárie
2018
BATAILLE, Georges. Manet. Organização e tradução de Célia Euvaldo. São Paulo: Martins Fontes , 2020.
BATAILLE
Georges
Manet
Organização e tradução de Célia Euvaldo
São Paulo
Martins Fontes
2020
BRANTES, Simone. A paixão perde o vínculo de sua causa. In: BRANTES, Simone. Quase todas as noites. Rio de Janeiro: 7Letras, 2016. p. 74.
BRANTES
Simone
A paixão perde o vínculo de sua causa
BRANTES
Simone
Quase todas as noites
Rio de Janeiro
7Letras
2016
74
CAEIRO, Alberto. O amor é uma companhia. In: CAEIRO, Alberto. Obra completa de Alberto Caeiro. Lisboa: Tinta-da-china, 2016. p. 79.
CAEIRO
Alberto
O amor é uma companhia
CAEIRO
Alberto
Obra completa de Alberto Caeiro
Lisboa
Tinta-da-china
2016
79
CARSON, Anne. Eros the Bittersweet: An Essay. Princeton: Princeton University Press, 1986.
CARSON
Anne
Eros the Bittersweet: An Essay
Princeton
Princeton University Press
1986
CARSON, Anne. Autobiografia do vermelho. Tradução de Ismar Tirelli Neto. São Paulo: Editora 34, 2021.
CARSON
Anne
Autobiografia do vermelho
Tradução de Ismar Tirelli Neto
São Paulo
Editora 34
2021
DAVIS, Lydia. Fragmentário ou inacabado: Barthes, Joubert, Hölderlin, Mallarmé, Flaubert. In: DAVIS, Lydia. Ensaios um. Tradução de José Mário Silva. Porto: Bazarov Edições, 2021. p. 189-206.
DAVIS
Lydia
Fragmentário ou inacabado: Barthes, Joubert, Hölderlin, Mallarmé, Flaubert
DAVIS
Lydia
Ensaios um
Tradução de José Mário Silva
Porto
Bazarov Edições
2021
189
206
ERBER, Laura. Ghérasim Luca por Laura Erber. Rio de Janeiro: Editora da UERJ, 2012.
ERBER
Laura
Ghérasim Luca por Laura Erber
Rio de Janeiro
Editora da UERJ
2012
HELDER, Herberto. a vida inteira para fundar um poema. In: HELDER, Herberto. Poemas completos. Porto: Porto Editora, 2014. p. 611-612.
HELDER
Herberto
a vida inteira para fundar um poema
HELDER
Herberto
Poemas completos
Porto
Porto Editora
2014
611
612
LOPES, Adília. A minha musa antes de ser. In: LOPES, Adília. Dobra: poesia reunida 1983- 2014. Lisboa: Assírio & Alvim , 2014. p. 62.
LOPES
Adília
A minha musa antes de ser
LOPES
Adília
Dobra: poesia reunida 1983- 2014
Lisboa
Assírio & Alvim
2014
62
MAUBERT, Franck. Conversas com Francis Bacon: o cheiro do sangue humano não desgruda seus olhos de mim. Tradução de André Telles. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.
MAUBERT
Franck
Conversas com Francis Bacon: o cheiro do sangue humano não desgruda seus olhos de mim
Tradução de André Telles
Rio de Janeiro
Zahar
2010
PRIGENT, Christian. Para que poetas ainda? Organização e tradução de Inês Oseki-Dépré e Marcelo Jacques de Moraes. Florianópolis: Cultura e Barbárie , 2017.
PRIGENT
Christian
Para que poetas ainda?
Organização e tradução de Inês Oseki-Dépré e Marcelo Jacques de Moraes
Florianópolis
Cultura e Barbárie
2017
SANTOS, Roberto Corrêa dos. Naco: Arte|Literatura|Fetiche - ficcionismos: a parte e o resto. Rio de Janeiro: Otti Editora, 2009.
SANTOS
Roberto Corrêa dos
Naco: Arte|Literatura|Fetiche - ficcionismos: a parte e o resto
Rio de Janeiro
Otti Editora
2009
1
Tradução livre desta passagem: “Words do have edges. So do you”.
2
Parodio, aqui, a primeira frase do verbete “Informe”, de Georges Bataille, publicado no primeiro número da revista Documents: “Um dicionário começaria a partir do momento em que não desse mais o sentido, mas as tarefas das palavras”. (Bataille, 2018, p. 147).
3
Aludo a algumas telas do pintor, a exemplo de Triptych (1967) e Sand dune (1983).
4
Franck Maubert escreve a seguinte nota de abertura às suas Conversas com Francis Bacon: “Após ter consultado diversas traduções da Oréstia de Ésquilo, trilogia da qual Eumênides faz parte, não consegui encontrar esta frase tal como citada por Bacon: ‘O cheiro do sangue humano não desgruda seus olhos de mim’. Ele a mencionou para mim em diversas ocasiões, em francês, apropriando-se dela. Às vezes, pergunto-me se não se trata de uma tradução do próprio Bacon, mais forte que a formulação que costumamos encontrar para esse verso das Eumênides: ‘O cheiro do sangue humano me sorri’” (Maubert, 2010, p. 8).
5
Segundo Bataille em seu ensaio dedicado ao pintor, Manet destrói - ultrapassa - o tema. Mas, ao pintar a recusa do tema, ele não o negligencia. O que ocorre entre a pintura e o seu tema é análogo ao que ocorre entre o rito do sacrifício e a sua vítima: a ultrapassagem do tema, em Manet, acontece “como no sacrifício, em que se altera, se destrói a vítima, mata-a até, mas sem negligenciá-la” (Bataille, 2020, p. 63, grifo do autor).
Parecer Final dos Editores Ana Maria Lisboa de Mello, Elena Cristina Palmero González, Rafael Gutierrez Giraldo e Rodrigo Labriola, aprovamos a versão final deste texto para sua publicação.
Authorship
Julia Klien
Concepção, projeto, pesquisa bibliográfica, análise e interpretação dos dados
Redação e revisão do manuscrito
Aprovação da versão final do manuscrito para publicação
Responsabilidade por todos os aspectos do trabalho e garantia pela exatidão e integridade de qualquer parte da obra
Julia Klien
Doutora e mestra pelo Programa de Pós-Graduação em Literatura, Cultura e Contemporaneidade da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PPGLCC/PUC-Rio). Graduou-se no Bacharelado em Letras - Produção Textual pela mesma instituição. Ainda que especialmente atenta à poesia e ao ensaio, sua pesquisa transita entre as áreas de Letras e Artes, com foco em experiências de tensionamento e perturbação dos domínios artístico e teórico-crítico, verbal e visual
Pesquisadora Autônoma, Rio de Janeiro, BrasilPesquisadora AutônomaBrasilRio de Janeiro, BrasilPesquisadora Autônoma, Rio de Janeiro, Brasil
Programa de Pos-Graduação em Letras Neolatinas, Faculdade de Letras -UFRJAv. Horácio Macedo, 2151, Cidade Universitária, CEP 21941-97 - Rio de Janeiro RJ Brasil , -
Rio de Janeiro -
RJ -
Brazil E-mail: alea.ufrj@gmail.com
rss_feed
Stay informed of issues for this journal through your RSS reader