Open-access What temporality in adolescence?

agora Ágora: Estudos em Teoria Psicanalítica Ágora (Rio J.) 1516-1498 1809-4414 Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ Abstract: In this article, the problem of adolescence is elaborated from the dimension of psychic temporality, considering its singular character and complexity. In adolescence, a crucial passage in the subject’s life history, childhood becomes the object of profound resignification on multiple levels. The resonance of this passage, from childhood to adulthood, in the psyche of parental figures, particularly in the current historical context, is one of the elements of this text, which also contemplates, with a focus on temporality, some of the obstacles and destinations of the experience of the pandemic in the psychic functioning of adolescent subjects. À duração de minha existência dou uma significação oculta que me ultrapassa. Sou um ser concomitante: reúno em mim o tempo passado, o presente e o futuro, o tempo que lateja no tique-taque dos relógios. Clarice Lispector (1973) Se nos deixarmos inspirar pela frase de Cazuza, “o tempo não para”, podemos supor a presença de uma inevitável angústia e uma multiplicidade de sentimentos em todos nós, desde o desespero à esperança no futuro, no transcorrer da realidade histórica. Porém, no plano do funcionamento psíquico, o ritmo da passagem do tempo não se dá exatamente dessa mesma forma. O que caracteriza a temporalidade psíquica, tendo em vista seu caráter particular, é uma simultaneidade bem especial entre passado, presente e futuro. A determinação de nossas escolhas, as bases do que sente o sujeito como suas potencialidades, facilidades e barreiras no âmbito psíquico, se situa em um tempo que não é apenas o do presente ou o dos anseios ou temores do futuro, já que concerne fundamentalmente ao registro do infantil. Lembremo-nos, de antemão, do essencial pressuposto freudiano da atemporalidade dos processos psíquicos inconscientes. A este respeito, pontua Jacques André, com pertinência, que “[...] esta é outra maneira de tornar problemático o que tempo quer dizer. O tempo social tem uma história; o tempo psíquico tem uma gênese” (André, 2010, p. 4, grifo nosso). Somos movidos por aquilo que nos habita em todos os diversos estratos de nossa memória psíquica, em permanente movimento de retomada, segundo a lógica do a posteriori, em um caminho de permanente ressignificação, envolvendo representação, recalque e a ação de outros mecanismos internos; fluxo temporal que implica, ao mesmo tempo, uma direção de progressão e regressão. Este complexo movimento se dá também em um tempo que não para, mas, neste caso, a partir de uma distinta perspectiva. A memória própria à existência do sujeito implica, inclusive, a passagem de um tempo futuro, se assim se pode dizer, pela presença inescapável na vida subjetiva dos ideais e das expectativas, sejam estas de ordem positiva ou negativa. Esse movimento da psique humana, envolvendo a temporalidade à qual nos referimos, se dá em um tempo cujo transcurso, cabe ainda sublinhar, é absolutamente singular para cada um. Ressaltemos ainda a importante relação entre temporalidade e espaço, principalmente no que diz respeito à constituição e manutenção das fronteiras entre corpo e psiquismo, entre o eu e os objetos internos e externos. Os traços e marcas dessa memória, consciente e inconsciente, remetem de modo prioritário, em sua determinação temporal, não à infância, enquanto período relativo ao tempo cronológico, mas, sim, ao registro do infantil. É a partir dessa perspectiva concernente à temporalidade psíquica que devemos considerar a experiência do adolescer, que comporta essa mesma densidade e complexidade que são próprias da história subjetiva. A adolescência, assim como a vida infantil, tampouco corresponde a uma etapa cronológica específica; ela constitui uma relevante experiência subjetiva através da qual o infantil vem a ser objeto de uma especial ressignificação em múltiplos planos, estágio absolutamente crucial e determinante na história de vida de cada sujeito. Ao considerarmos a particularidade da dimensão de repetição que aí tem lugar, com seu caráter inescapavelmente traumático, no sentido de um trauma constitutivo - podendo, em determinados casos, se revelar desestruturante -, vemo-nos, mais uma vez, diante da significativa complexidade da temporalidade psíquica. Para além da retomada do infantil, a travessia da adolescência é habitada por múltiplas e intensas transformações, rupturas e retomadas do passado impostas no vivido presente dessa experiência. Esta é igualmente permeada por uma dimensão de futuro, por impulsão, favorável ou dificultosa, da construção, gestada desde sempre, de inúmeros desejos e projetos de toda ordem, esfera onde se mesclam fantasia e realidade, desejos e renúncias. Trata-se de ideais que vêm ganhar forma nesse estágio, mas que poderão eventualmente encontrar obstáculos, internos e externos, nesse movimento de busca rumo à sua consolidação e realização. Além de fatores ligados à dinâmica e economia pulsionais, à qualidade da regulação do conflito interno, isto se dá por forte imposição e estímulo de múltiplas demandas e restrições externas, em particular aquelas advindas do social, representadas inicialmente no seio da família, a partir inclusive de demandas e anseios projetados pelas figuras parentais, mais precisamente daqueles que desempenham essa função. Entendemos a adolescência, portanto, como experiência subjetiva marcada por não mais habitar, em primeiro lugar, o corpo infantil, pré-púbere e, a partir de então, se perceber em situação de perda da proteção da vida infantil, com tudo o que a delimita, desde as relações mais íntimas e as mais sociais, estas aqui consideradas em uma acepção bastante ampla. O adolescer pode ser entendido enquanto ressonância, no universo psíquico, da profunda transformação no psiquismo que o advento da puberdade vem promover, sem - vale pontuar com vigor - com esta coincidir. A respeito dessa singular diferença e descompasso, ressalta Jacques André (2009, p. 31): “Adolescens, ‘em crescimento’. A puberdade, a maturidade genital, até pode nos humanos, entre os mamíferos, ser particularmente tardia; chega sempre de forma intempestiva. Psiquicamente, nunca é hora”. Em princípio, a adolescência é uma travessia transitória rumo à dita vida adulta. Se a consideramos efetivamente como problemática subjetiva, constatamos que a condição adolescente pode, aliás, vir a permanecer como central e organizadora enquanto lógica do funcionamento psíquico na história de um determinado sujeito, independentemente de sua idade cronológica. Isto tem lugar quando essa passagem se mantém em estado de patológica cristalização, o que sinaliza ter havido certo congelamento da temporalidade, neste caso, um tempo que para. Matar o infans na adolescência A infância é um mundo fechado destinado a desaparecer, deixando a criança para se tornar um homem ou uma mulher. Suas portas se fecham com a adolescência, mas a criança permanece dentro dela, desde que a adolescência funcione como reabertura do tempo, como abertura para a temporalidade psíquica. Desde que, tendo dado as costas à infância, o adolescente possa dar vida à criança em seu interior. Manter a criança viva dentro de si não é um dado adquirido: é uma faculdade criativa. Uma adolescência criativa. “Uma adolescência bem-sucedida é aquela que permite que o adolescente - e o adulto - mantenha a criança viva dentro de si”. Essas palavras de F. Marty (2005, p. 249) abrem caminhos para reflexões cruciais sobre essa intensa e turbulenta travessia, como por exemplo, sobre o significado do gesto suicida e os avatares da iniciação na temporalidade psíquica quando o processo adolescente chega a um impasse. O que torna tão difícil manter uma criança viva em si? Catherine Chabert (2003) oferece uma pista ao destacar o fantasma da criança morta no centro dos episódios melancólicos que podem atormentar qualquer pessoa. Ela associa essa representação da criança morta - que descreve como limite - à idealização desenfreada e a um senso de atemporalidade. A idealização e a atemporalidade dizem respeito tanto ao infans onipotente quanto à criança morta. Como experiência extrema, citemos a idealização e a atemporalidade características do adolescente suicida, que se decepciona em sua busca por um ideal e que, por meio de seu ato, congela o tempo. Ao mesmo tempo cativo de uma autoimagem confinante (Charazac-Brunel, 2002), o adolescente suicida é como Édipo, forçado a assistir a imagens que são excitantes demais. Prestar atenção ao efeito de eco entre a criança pequena e o adolescente (Braconnier; Golse, 2008) à luz do drama de Édipo - que ilustra particularmente o problema do suicídio - significa escutar a renúncia impossível da onipotência infantil. Abrir mão da onipotência da infância não é algo evidente. E, no entanto, a parte idealizada de si mesmo, que apoia os ideais dos pais, muda, torna-se incômoda em um determinado momento. Torna-se necessário disso se livrar, processo de distanciamento a ser trabalhado internamente, tarefa essencial para o processo de subjetivação. É o assassinato simbólico do infantil que todos devem realizar por meio da atividade representativa (Leclaire, 1975). Matar o infans (De Kernier, 2015) é matar um outro em si mesmo, matar aquela parte de si mesmo que está colada aos ideais, resignada a permanecer muda, por falta de uma resposta adequada às suas tentativas de solicitação ao seu meio. Paradoxalmente, essa morte simbólica do infans é necessária para se manter vivo o infantil em si. É como se o adolescente se sentisse ameaçado de voltar a ser o bebê radicalmente impotente que já foi, dolorosamente sujeito aos desejos dos outros e dominado por um impulso com o qual não sabe o que fazer. O gesto suicida, por exemplo, tenta dar forma e significado a mensagens que até então não haviam sido ouvidas, pensadas ou até mesmo impensáveis. Se esse sujeito sobreviver, talvez sua necessidade de separação e diferenciação seja ouvida, e talvez suas experiências agressivas e até mesmo homicidas possam finalmente ser elaboradas. Não conseguindo recorrer à encenação psíquica e sem terem acesso a representações, os adolescentes recorrem à atuação. Simbólica e fantasmaticamente, trata-se de matar a parte mumificada de si mesmos em uma telescopagem de gerações, matando a criança muda, moldada pelos ideais dos pais e que não foi capaz de experimentar a formação de seus objetos externos e internos. Ao custo de um ato violento, resta a esperança secreta de se mover, de sofrer mutação, de tornar possível a separação e, a partir daí, a subjetivação, tornando-se um sujeito, experimentando a si mesmo como um sujeito. Tomados por um sentimento de confinamento e pela convicção de que não têm escolha, esses adolescentes podem recorrer ao ato na esperança tácita de que tudo pare ou que tudo se abra, como uma última tentativa de romper o impasse e abrir um novo caminho. Paradoxalmente, a violência do gesto suicida, por exemplo, envolve uma busca genuína pela vida, semelhante à violência que rege o início da existência psíquica. O ato autodestrutivo pode ser visto como uma violência contra a violência imposta. Esses adolescentes se veem presos em um dilema que só pode ser resolvido por meio da autodestruição; eles só podem destruir os laços que consideram invasivos, e até mesmo incestuosos, destruindo a si mesmos. Seus atos autodestrutivos refletem uma luta contra a ameaça de um sentimento de confusão entre sujeito e objeto, de uma indefinição entre o eu e o outro. Neste caso, o adolescente não apenas age, mas volta contra si mesmo toda a agressão dirigida ao outro, na medida em que esse outro é considerado frágil demais para recebê-la. Convencido de que a outra pessoa não poderia sobreviver a esses movimentos destrutivos, ele se autodestrói. O excesso pulsional tende a irromper e é preciso encontrar uma maneira de ser descarregado (Roussillon, 1991, p. 199-204), podendo levar ao apelo de atos hetero ou autoagressivos. Em meio a esse vivido de confusão em que se encontram e contra a qual lutam, os adolescentes podem se encontrar divididos entre desejos contraditórios e recusas de se separar. A angústia da separação, muitas vezes não reconhecida, mas expressa por meio de ações, pode refletir uma incapacidade momentânea de processar os transtornos dessa travessia, tanto físicos quanto psicológicos. Essa incapacidade de processá-los também pode refletir a incapacidade dos pais de lidar com a crise da adolescência, deixando que o adolescente lide com questões que não foram resolvidas na geração anterior. Vejamos, a seguir, como se embaralham em toda essa problemática do tempo as diferentes “idades” da vida, com foco em certos aspectos que marcam o tempo atual, a singularidade das configurações subjetivas estando sempre em orgânica articulação com determinado contexto histórico. Adolescer hoje: entre infância abreviada e recusa do envelhecer Se nos voltamos para as particularidades da adolescência contemporânea, temos assistido a uma espécie de antecipação dessa travessia, pressupondo, em certa medida, uma infância abreviada em seu tempo por uma precoce e disruptiva “adultização”. Ficamos hoje impressionados com a suposta sabedoria das crianças, plenas de informação, super fluentes em seu discurso sobre uma surpreendente variedade de temas. Porém, isto não deixa de nos alarmar, pela violência dessa flagrante interrupção do universo infantil. A infância é intensamente violentada por essa antecipação temporal subjetiva, que se expressa no comportamento supostamente “maduro” das crianças. Estas são excessivamente demandadas, pelo mundo externo - mas com direto eco em seu universo interno consciente e, de modo ainda mais ameaçador, em seu universo inconsciente -, a logo ingressar na “adolescência”. Trata-se, a nosso ver, de uma antecipação traumática, violenta, tendendo, paradoxalmente, a dificultar a travessia e a saída da adolescência, condição, em princípio, transitória, ao menos quanto à dominância de sua permanência na história psíquica de cada sujeito. Por um lado, observa-se uma antecipação forçada em razão da “adultização” da infância hoje imperativa em nosso contexto sociocultural; por outro lado, há a tendência a um prolongamento da adolescência que daí, em parte, resulta, fenômeno cuja determinação envolve evidentemente inúmeros fatores. Além do encurtamento forçado, cultural, da infância, o culto à juventude, tão marcante na atualidade, é outro elemento a destacar, assim como o é a centralidade da esfera do corpo. O prolongamento da travessia da adolescência tem também como fundamento as significativas dificuldades de acesso desses sujeitos à vida profissional e à possibilidade de independência no plano socioeconômico, pela escassez de garantias rumo à conquista de uma inserção social dentro de um novo patamar. Vivemos hoje um tempo sem facilitadores para a realização dos projetos concretos de vida, sem um suporte mais consistente no ambiente social a ser oferecido ou a servir de referência àqueles que, saindo da infância e ingressando na vida adulta, estão não só desejosos dessa realização, mas efetivamente empenhados nessa direção. Aliada a esses elementos, a presença de uma ideologia individualista marcante, assentada em ideais de desempenho pessoal, faz com que a conquista de um “lugar ao sol” não seja nada simples de ser atingida pelos adolescentes e jovens. Vivemos um tempo sofrido e muito dificultoso, assentado em um sistema neoliberal que se orienta, por sua vez, pela lógica de um capitalismo selvagem. Estes são aspectos nos quais não podemos aqui nos deter - haja vista os objetivos mais centrais deste artigo -, mas são elementos de análise muito relevantes. Estes vêm sendo, aliás, amplamente explorados em diferentes áreas, nas ciências sociais, na psicologia, na psicanálise e, vale sublinhar, sentidos na pele no cotidiano dos indivíduos, das famílias e, particularmente, desses jovens que, em tão grande número, se encontram em situação de especial dificuldade em seu processo de inserção social. Temos observado esse fenômeno com aguda clareza no percurso de nossos pacientes e também de nossos alunos ao longo de sua formação acadêmica. A este respeito, notamos a presença de um novo e difícil processo de luto a elaborar, em analogia com aquele experimentado na entrada da vida adolescente, após o advento da puberdade, pela perda da proteção da vida infantil, ainda que com a promessa de outras conquistas. Referimo-nos aqui à exigência de um árduo trabalho de luto no momento de finalização da formação universitária, ou seja, no rompimento das fronteiras desse ambiente ainda protetor, tempo de certa “latência”, tempo de preparação, de espera. O prazer da conquista de um título profissional na finalização do percurso universitário pode, ao mesmo tempo, ser fonte de intensa angústia, justamente por constituir uma nova perda de proteção, sendo, de alguma forma, um novo reviver de desamparo, inerente ao adolescer e que já precisou, portanto, de elaboração, de superação. Essa outra retomada do desamparo é provocada, nesse estágio, pelo referido confronto com a ausência de uma garantia mínima de inserção social e profissional, concluída a formação acadêmica. Como exemplo dessas expectativas, pensemos no ingresso no mercado de trabalho, no desejo de conquista de alguma independência concreta por essa via, em um eventual anseio de constituir uma família, dentre outros. Um visível prolongamento da adolescência hoje observada parece fortemente relacionado também às dificuldades das figuras parentais, problemática que se refere, nesse caso, à temporalidade de sua própria experiência subjetiva, ou seja, a questão da travessia desses sujeitos rumo ao envelhecimento. A entrada na adolescência de seus filhos promove no psiquismo dos pais a retomada de muitos de seus vividos, desde aqueles próprios ao infantil aos do adolescer, além de outros elementos de sua história subjetiva, mais ou menos frágeis. A adolescência dos filhos corresponde necessariamente ao seu processo de envelhecimento. Em um contexto sociocultural marcado por forte culto da juventude, esses sujeitos não desejam amadurecer e vivenciam esse processo apenas como perda. Isto faz com que o luto demandado neles encontre um forte obstáculo. Pontua acertadamente Costa (2006) que a insistência em se manter a juventude eterna faz com que nós nos perguntemos: como os jovens vão querer envelhecer se aqueles que são suas referências, não sendo mais jovens, só se identificam com os próprios jovens? A respeito dessa idealização, pensada pelo autor como uma espécie de beco sem saída, “a juventude, ela própria, tornou-se um ícone da moral do espetáculo. Ou seja, de condição de mudança, a ‘juventude’ passou a ser um objetivo de mudança” (Costa, 2006, p. 19). A adolescência impõe uma experiência de separação dos pais e será preciso elaborá-la. Mas como elaborar esse vivido, como realizar de modo favorável esse trabalho de luto quando a separação física está impedida ou muito dificultada? Este é um significativo aspecto a considerar, que nos interroga, mais uma vez, sobre a dimensão de temporalidade, na medida em que esse tempo dos pais e o tempo de vida dos jovens e dos adolescentes precisam estar em compassos diferentes. O desamparo marca a nossa existência e não vai nunca desta se apagar completamente. É um terreno próprio aos primórdios da vida psíquica, base do infantil, solo sempre apto a ser retomado em sofrimento. Na adolescência, essa retomada é inescapável, pois o sujeito passa a ser convocado, em muitas esferas, a falar em nome próprio, o que promove certo retorno do desamparo, mantido recalcado, mas sempre pronto a retornar. Porém, para que esse processo se dê de forma suficientemente boa, será preciso que o tempo da dependência à proteção das figuras parentais, nos planos primário e edipiano, possa seja superado e, para tal, o ambiente familiar terá que se deixar apagar. Neste ponto de nossa reflexão, chamamos novamente a atenção para a configuração que caracteriza a família contemporânea, quanto à questão do reconhecimento da diferença geracional. A família é estruturada hoje de maneira particularmente igualitária quanto aos papéis de cada um de seus membros, como o revela, conforme mostramos acima, a idealização da juventude por parte dos adultos em geral, e, consequentemente, pelas figuras parentais. Parece-nos inegável o papel desse fenômeno no prolongamento da adolescência a que hoje assistimos, e que é correlativo, em nosso entender, a uma neutralização da diferença geracional. O reconhecimento desta diferença é absolutamente fundamental para a consolidação da interiorização da lei simbólica. A questão edipiana infantil, que retorna fortemente na adolescência, exige o estabelecimento de um novo patamar nesse processo implicado, agora de modo mais premente, no reconhecimento da diferença geracional. Observamos na clínica, nas configurações subjetivas atuais, uma especial dificuldade nesse plano tão essencial para a regulação interna no plano do conflito pulsional. Se há uma tendência a uma transgressão geracional, conforme assinalado anteriormente por Cardoso (2008), tendência à neutralização dessa diferença básica e estruturante, como esses adolescentes vão poder adequar sua inserção social com respeito à diferença do outro, com respeito a tudo aquilo que está na origem da própria lei social? Quanto a esse encontro excessivo no âmbito do espaço e no tempo de gerações, de certo modo, tempo do traumático, a experiência coletiva da catástrofe da pandemia de Covid-19, a qual recentemente nos assolou, abriu um campo de reflexão que nos permite aprofundar nossas ideias sobre a temporalidade na adolescência, elementos nos quais nos deteremos no tópico seguinte. Quando uma crise de saúde congela o tempo As medidas de confinamento após a epidemia de Covid-19 podem ter levado a uma convergência de traumas, especialmente entre adolescentes com dificuldades pré-existentes. O fato de ser forçado a permanecer confinado em casa pode ter ampliado a confusão entre espaços internos e externos, e a temporalidade. O espaço se reduziu, com os adolescentes sendo obrigados a ficar com os pais, enquanto o tempo parecia ilimitado, com muitos projetos tendo de ser cancelados ou até mesmo suspensos. A realidade do confinamento veio colidir com as dificuldades do adolescente em se orientar no espaço e no tempo. A realidade da morte ficou clara durante a crise de saúde. Alguns jovens podem ter temido pela vida de um pai em risco ou por avós idosos, e podem ter tido que lidar com o luto de parentes que foram vítimas da Covid-19. Mas, acima de tudo, havia uma ameaça além do vírus, que alimentou a ansiedade de um grande número de adolescentes e jovens adultos: a incerteza dos projetos, especialmente os profissionais, que também ressoavam inevitavelmente com o espectro da morte. Vendo adultos ao seu redor perturbados por serem menos requisitados profissionalmente ou até mesmo impedidos de realizar sua atividade, considerada “não essencial” (ou até mesmo “menos essencial”, caso em que surge uma comparação ou até mesmo uma hierarquia de áreas de competência, com o risco de alguns serem desqualificados), se sua própria viagem de estudos ou estágio, por exemplo, está comprometida ou mesmo impossível, se eles têm dúvidas sobre o que podem planejar e estão perplexos sobre a veracidade das informações que recebem com tantas contradições, como podem construir projetos? A confiança na continuidade e na permanência dos pontos de referência sofreu novo golpe, talvez acentuando a dificuldade de compromisso e escolhas. Percebemos a intensificação da dificuldade desses sujeitos em dirigir um olhar para o futuro, com a promessa de alguma coisa almejada. Se já se observava uma tentativa de fuga da condição de finitude anunciada pelo próprio adolescer, nesse contexto da pandemia, essa dimensão - que aí assume um caráter mortífero, centrado na própria esfera da fragilidade do corpo, de sua exposição ao risco -, torna-se um vivido mais ameaçador. A pandemia agravou todo esse quadro, tendo afetado especialmente a esfera do laço social, haja vista, por exemplo, a busca de identificação com os pares, totalmente prejudicada pelo isolamento social. Este constitui o negativo absoluto da necessidade de aproximação, de troca, imperativa entre adolescentes. No decorrer dessa travessia, da infância à vida adulta, as referências precisam ser outras, apoiadas agora intensamente na identificação com os que compartilham experiências internas essenciais, inclusive sofrimentos e angústias em cuja base se encontra, entre outros inúmeros conflitos, a necessidade de afastamento das figuras parentais. Este processo de troca possibilita a abertura do horizonte das relações intrapsíquicas e intersubjetivas desses sujeitos, permitindo o acesso a outro patamar quanto ao laço social, novo patamar, em última instância, no plano da dissolução do complexo de Édipo. Sua revivência tem forte lugar na adolescência, nela se constituindo como elemento central. Eis aqui um tópico que, mais uma vez, nos conduz à dimensão da temporalidade psíquica, ou seja, à retomada, a posteriori, da travessia edipiana a partir desse ponto nodal que habitou o tempo do infantil. O processo de separação das figuras parentais ficou extremamente prejudicado no período de confinamento durante a pandemia. Quanto a esta situação efetivamente limite, catastrófica, observamos que o traumático já inerente à adolescência, posto que acionado, entre outros elementos, por uma problemática justamente de separação - da vida infantil, do corpo infantil, da proteção dos pais da infância etc.- tendeu a se intensificar em outro nível, em razão precisamente da proximidade excessiva dos adolescentes com as figuras parentais. Durante o confinamento, o estreitamento do espaço familiar dificultou significativamente a libertação desses sujeitos em relação a esses objetos. Conforme apontamos acima, a partir da singularidade das configurações familiares atuais em seu contexto cultural, as figuras parentais tendem a excessivamente ocupar, muitas vezes, o mundo interno dos sujeitos adolescentes, elemento, portanto, de obstáculo ao necessário processo de liberação interna desses objetos. Do ponto de vista da realidade externa, essa forma limite imposta ao convívio familiar durante o confinamento, em um convívio contínuo, com radical restrição do espaço fronteiriço entre familiares, foi especialmente perturbadora, justamente por barrar, de maneira violenta, práticas que favorecem a separação. Referimo-nos a experiências lúdicas, criativas, de encontros com os pares, que habitualmente têm lugar em um cotidiano “normal”. Quanto a essa questão da qualidade da presença/ausência, lembremos, com Isée Bernateau, que não é apenas a presença dos objetos parentais que se faz necessária, pois esta presença pode se revelar intrusiva. “A presença do objeto deve ser silenciosa. A experiência de solidão compartilhada só é possível se for acompanhada do silêncio benevolente dos objetos internos” (Bernateau, 2010, p. 151). Este aspecto concerne intimamente à dimensão da temporalidade psíquica no processo de adolescer - eixo central da reflexão à qual nos dedicamos neste artigo. Todas essas situações às quais esses sujeitos se viram confrontados na ocasião da pandemia, principalmente no período mais radical do confinamento - e mencionamos aqui apenas duas: o isolamento e a proximidade excessiva com as figuras parentais -, vieram incrementar a incidência de estados depressivos na adolescência, já tão presentes na clínica contemporânea, marcada pelas patologias do ato e, igualmente, pela inação, pela recusa a agir no mundo. Muitos adolescentes passavam os dias na internet, em redes sociais ou videogames. Esse refúgio no virtual pode ter proporcionado uma ilusão de temporalidade suspensa e onipotência fora da realidade, e alguns podem ter se entregado a isso e achado benéfico, desfrutando da suspensão de conflitos. Por fim, eles recorreram cada vez mais a estratégias de evasão. Na saída do confinamento, a necessidade de retornar à vida real foi particularmente provocadora de ansiedade para vários sujeitos, muito mais do que o isolamento causado pelo confinamento; daí, por exemplo, as muitas descompensações que saturaram os serviços de emergência psiquiátrica. Os mecanismos para evitar relacionamentos reais não duram. As fragilidades subjacentes se revelam mais cedo ou mais tarde. Quando uma proximidade excessiva dos laços familiares exacerba os conflitos não elaborados e quando os relacionamentos com os colegas são evanescentes, a temporalidade perde sua perspectiva, obscurecendo os marcadores de identidade e dificultando a capacidade de se projetar, sob o risco de uma adolescência interminável. Para o adolescente sem fim, “o futuro não tem existência; ele está perdido no limbo, na distância mal definida de uma temporalidade sem projeção em outro futuro” (Marty, 2005, p. 245). Embora tenha havido uma época em que se tornar adulto era visto de forma muito positiva como uma emancipação esperada, muitos jovens agora veem o mundo adulto como provocador de ansiedade e restritivo. Muitas vezes, a palavra “responsabilidade” não tem mais o valor positivo que poderia ter tido há algumas décadas (De Kernier, 2023). Uma adolescência sem fim A imobilização em uma eterna adolescência parece, à primeira vista, ser uma estratégia mais confortável que evita conflitos, mas é precária, como revelam os sintomas. Por exemplo, a insônia pode ser entendida como uma organização sintomática que reage à agressão interna não assumida (De Kernier et al., 2017), tornando a noite um receptáculo espaço-temporal para esses movimentos depressivos, ansiosos e agressivos quando o dia ou a atividade onírica não são mais suficientes. A temporalidade aparece perturbada, com a sucessão de fases diurnas e noturnas lutando para ser integrada ao ritmo do próprio sujeito. As transições são apreendidas, com mudanças ameaçadas de serem marcadas pelo selo da morte, devido a uma situação traumática sofrida em um momento remoto que forjou essa convicção no infans. Subsiste inconscientemente de que mudar é morrer. Na adolescência ou pós-adolescência, afirmar-se insone não depende apenas do tempo de sono (Julian et al., 2021); é sobretudo uma experiência subjetiva que sinaliza uma dificuldade de se enquadrar em uma temporalidade estruturante, de se ancorar em uma realidade marcada por uma escala de prioridades e escolhas. Na adolescência, a temporalidade se torna uma realidade sensível, com a consciência das metamorfoses do corpo nos convidando a ocupar nosso lugar em uma nova geração, entre os adultos, mas que é distinta da geração dos pais. Houve um tempo em que quem construía uma catedral não via o fim dela durante a vida. Podemos supor que essa realidade impactou a noção de tempo. Em nossa época, onde muitas coisas são realizadas de forma imediata, em poucos cliques e à distância, uma perspectiva de longo prazo, a paciência na realização de uma tarefa ou de um projeto e a aceitação de sua inevitável finitude são ainda menos evidentes. O reconhecimento da realidade da morte e de sua imprevisibilidade é particularmente importante em termos de organização do tempo e de estruturação da transição de uma geração para a seguinte. A questão de nosso relacionamento com a morte é particularmente sensível durante a adolescência. As transformações físicas e psicológicas que ocorrem durante esse período nos confrontam com a finitude da vida e seus limites. Os adolescentes precisam abrir mão de suas fantasias de onipotência, imortalidade e bissexualidade. Eles têm escolhas a fazer; está tendo início uma nova geração, diferente da de seus pais, e percebem que o tempo passa e as coisas não duram para sempre: o tempo não para. Finalizando este artigo, reiteramos que a temporalidade não pode ser vista como linear, já que a adolescência envolve a reelaboração de traços de memória de origem infantil, que tem um caráter atemporal. Além disso, conforme pontuamos no início deste texto, a temporalidade é precisamente o que o inconsciente ignora, como Freud apontou pela primeira vez: “A experiência nos ensinou que os processos psíquicos inconscientes são em si mesmos ‘atemporais’. Isso significa, antes de tudo, que eles não são ordenados temporalmente, que o tempo não os modifica de forma alguma e que a representação do tempo não pode ser aplicada a eles” (Freud, 1920, p. 70). Em períodos de intensa mudança de identidade, e especialmente quando há trauma envolvido, o problema da temporalidade vem à tona. Quando o sujeito tem um ritmo imposto que não é o seu próprio, ou que ele não pode criar, a impressão deixada é a de um mundo incontrolável ou de um mundo sem esperança. Referências ANDRÉ, J. 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Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ Instituto de Psicologia UFRJ, Campus Praia Vermelha, Av. Pasteur, 250 - Pavilhão Nilton Campos - Urca, 22290-240 Rio de Janeiro RJ - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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