Resumo
Michel Laub, importante escritor de brasileiro contemporâneo, debate sua obra, a relação de seus romances com outras formas literárias (em especial o ensaio), a crise política brasileira e as implicações da ficção no debate público. Esta entrevista foi realizada por e-mail em março de 2024, por ocasião do lançamento de Passeio com o gigante, seu último romance publicado. Assim, de modo a cobrir sua produção literária, num balanço crítico de sua própria obra, que Laub endereça respostas ligadas à política brasileira e aos efeitos sociais das múltiplas crises que assolam o Brasil.
Palavras-chave:
Michel Laub; literatura brasileira contemporânea; crise política; fascismo; ensaio
Abstract
Michel Laub, an important contemporary Brazilian writer, debates his work, the relationship between his novels and other literary forms (especially the essay), the Brazilian political crisis and the implications of fiction in the public debate. This interview was carried out, via email, in March 2024, on the occasion of the release of Passeio com o gigante, his latest published novel. Thus, in order to cover his literary production, in a critical assessment of his own work, Laub addresses responses linked to Brazilian politics and the social effects of the multiple crises that are plaguing Brazil.
Keywords:
Michel Laub; contemporary Brazilian literature; political crisis; fascism; essay
Résumé
Michel Laub, grand écrivain brésilien contemporain, parle de son œuvre, de la relation entre ses romans et d'autres formes littéraires (surtout l'essai), de la crise politique brésilienne et des implications de la fiction dans le débat public. L’entretien a été réalisé par courrier électronique en mars 2024, à l'occasion de la sortie de son dernier roman, Passeio com o gigante. Dans une évaluation critique de sa production littéraire, Laub fournit des réponses liées à la politique brésilienne et aux effets sociaux des multiples crises qui frappent le Brésil.
Mots-clés:
Michel Laub; littérature brésilienne contemporaine; crise politique; fascisme; essai
Michel Laub, um dos mais celebrados autores brasileiros contemporâneos, nascido em Porto Alegre, em 1973, demonstrou desde cedo uma paixão pela escrita e pela literatura. Durante a graduação em Direito, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, começou a desenvolver suas habilidades literárias e a explorar temas que, mais tarde, se tornaram recorrentes em suas obras. Após contribuir com artigos para as revistas Carta Capital e República, Michel Laub decidiu mudar-se para São Paulo em 1997. Mais tarde, integrou a equipe da revista Bravo!, assumindo posteriormente o cargo de diretor de redação. Além disso, foi colunista da Folha de São Paulo e do Globo e coordenador de publicações e internet do Instituto Moreira Salles. Hoje, além de seu trabalho propriamente literário, Laub segue colaborando com diversos veículos e mantém uma coluna regular de viés ensaístico no jornal Valor Econômico. Este quadro de participação ampla no debate público e de presença assídua nos principais meios de comunicação mostra um escritor interessado na vida comunitária brasileira, tarefa que se cristalizou ao longo de sua carreira e ganhou afinidades com sua obra literária, como fica patente nos últimos romances do autor.
Foi em 1998 que Laub publicou seu primeiro livro, a coletânea de contos Não depois do que aconteceu. Sua carreira como ficcionista ganhou destaque com o lançamento de seu primeiro romance, Música anterior (2001), que foi recebido com elogios pela crítica e pelo público. Desde então, Laub tem continuado a produzir uma série de romances que abordam questões como memória, identidade e história. Com temas recorrentes que incluem a memória, o Holocausto, as relações familiares e a condição humana, Laub deixa um legado duradouro na literatura, com suas histórias ressoando através das páginas de seus livros e continuando a provocar reflexões sobre a vida cotidiana e os dilemas da sociedade brasileira contemporânea.
Entre suas obras mais notáveis estão Diário da queda, O tribunal da quinta-feira, A maçã envenenada e Solução de dois Estados, cada uma contribuindo para consolidar sua reputação como um autor talentoso e provocador. No início de 2024, anunciou-se a nova empreitada de Laub, um romance curto chamado Passeio com o gigante. São, hoje, ao todo, nove romances publicados, todos editados pela Companhia das Letras. Foi no âmbito da publicação deste último livro que esta entrevista foi realizada, de modo a cobrir tanto questões ligadas propriamente ao texto literário como também numa espécie de balanço de Laub em relação à sua própria obra, além de meditações em torno da política brasileira e de questões ligadas aos efeitos sociais das múltiplas crises que assolam o Brasil.
Em suas intervenções públicas e em seus últimos romances, de forma mais contundente em Solução de dois Estados e Passeio com o gigante, o cenário político brasileiro aparece de maneira mais explícita como tema. Quer dizer, com o início da crise política no Brasil, que abrange desde as jornadas de junho de 2013 até eventos como a reeleição de Dilma em 2014, o golpe de 2016, a prisão de Lula, a eleição de Bolsonaro e a pandemia, a produção literária de Laub vem absorvendo, digerindo e formulando questões a partir desse imbróglio. É assim que, por exemplo, questões como polarização, fascismo e possíveis formas de conciliação emergem como temas significativos.
Nas suas colunas ou pequenos ensaios publicados a cada duas semanas no suplemento de cultura do Valor Econômico, Laub geralmente articula assuntos do campo das artes - cinema, teatro, literatura, poesia, artes plásticas - com um pensamento crítico e, por vezes, político. Aquilo que instiga e mobiliza o autor pode variar entre um livro sobre a precisão da linguagem descritiva ao falar da escultura de um artista, um ensaio publicado na New Yorker que comenta um “hábito ruim” na construção de cinebiografias, ou a maneira de uma poeta que, ao olhar e pensar sobre outra cidade, carrega sua origem na linguagem e na maneira de ver. Há sempre uma investigação íntima nos pequenos ensaios, um movimento de ideias que parte de algo concreto e acessível a muitos - a exemplo de filmes, livros, exposições e peças.
Essa movimentação, pois, trata-se de algo mais contínuo que estanque, aparece com força em Passeio com o gigante. Centrada na figura do empresário judeu Davi Rieseman, a obra tenta dar conta das consequências do bolsonarismo em uma chave posterior a sua ascensão, embora o enfoque seja as eleições de 2018 e a relação com a pandemia de Covid-19. Se em Solução de dois Estados a figura dos irmãos Alexandre e Raquel opunha extremos num longo ensaio em formato documental sobre a conciliação, aqui esta surge já diluída. É nos espasmos de consciência de Davi, confrontado por um coro em um hospital, que entrevemos possibilidades cada vez mais sufocantes - de sobreviver, resistir e morrer.
Na entrevista a seguir, Michel Laub discorre sobre os procedimentos estéticos de seus livros, sua relação com o ensaio e como a agonia sociopolítica do Brasil encontra em seus livros um espaço de decantação.
Gabriel Martins da Silva, Luiza Müssnich e Mateus Baldi: Numa entrevista para a Biblioteca Pública do Paraná (Laub, 2013), você afirma que “Animais” (2012) é seu maior exercício autobiográfico. Aqui, nas palavras do narrador do conto: “Tudo verdade e tudo mentira, como sempre na ficção, e já pensei muito no porquê de ter sempre escrito sobre ele, e se quando ficar velho vou confundir a memória dele com a memória registrada nesses livros: os fatos que escolhi contar ou não, os sentimentos que eu tinha ou não, quem foi meu pai de verdade e o que eu me tornei ou não por causa disso, ou apesar disso, ou independentemente disso”. Por vezes, seu trabalho ganha uma dimensão ensaística muito evidente, na qual traços da política brasileira e da sua vida pessoal parecem “entrar” nos seus textos propriamente “literários”. Qual o papel da memória e da vida política na sua ficção e como é trabalhar com um material, por vezes, tão biográfico e tão próximo, como personagens de família e o judaísmo?
Acho que essa frase do conto segue valendo. Porque aproveitar fatos biográficos só funciona num romance quando se consegue dar sentido literário a eles. Nesse processo eles deixam de ser aquilo que aconteceu e passam a ser aquilo que nesse romance funciona como se tivesse acontecido. Até porque a memória, como sabemos, muda os fatos cada vez que os acessa, adaptando o passado ao viés do presente. A história do Diário da queda era uma em 2011, quando o livro saiu, e é outra agora, inclusive porque nisso entra o fato de existir há 13 anos um livro chamado “Diário da queda”, sobre o qual já falei centenas de vezes (e há diferenças entre cada uma dessas falas, certamente).
Então, e aí aplico a frase do “Animais”, eu agora com 50 anos, não importa mais o que eu fui lá trás, e sim o que fiz disso na minha vida adulta - que é uma narrativa em construção também, e isso vai entrando nos livros na forma de revisitas, reinvenções a fatos ou supostos fatos que ganham sentidos novos com o olhar do presente. Para mim, a importância da autobiografia num romance não está tanto nesses fatos acontecidos/não acontecidos, e sim na escolha dos temas. Aí sim não há como deixar de ser pessoal. Se fico três ou quatro anos escrevendo uma história, é porque o assunto dela faz parte das minhas preocupações. O que é mais autobiográfico, isso ou ter tomado ou não uma lata de Coca-Cola na cantina do colégio quando eu tinha 12 anos, como é descrito no Passeio com o gigante? Lembrando que naquela época nem havia latas de alumínio, os refrigerantes eram de máquina, servidos em copos de plástico (e daí?).
Quem escreve pode disfarçar o quanto quiser a base factual. Ou pode fazer o contrário, botá-la no livro como um jogo de verdade/mentira para quem lê. Nos dois casos, se o texto for esteticamente relevante, em algum nível a estética vai trair o componente biográfico, porque o conjunto acaba virando algo autônomo, às vezes independentemente da intenção do autor ou das leituras mais diretas da época em que o livro é publicado. Isso também vale para o ensaio. Uma frase ensaística dita num texto de jornal é uma coisa, na fala de um personagem, num determinado contexto de cena, é outra. No Passeio, assim como no livro anterior, Solução de dois Estados, não existe um ponto de vista único. São várias vozes ali (Davi no passado, Davi no presente, coro, esposa, mãe e assim por diante), e elas estão brigando entre si. Então, o meu ponto de vista como autor, que inclui as minhas eventuais memórias, se dilui no meio disso tudo. O que há de autobiográfico aí é eu ter posto essas vozes brigando entre si, o que tem a ver com debates que eu mesmo faço na minha cabeça, nas conversas com amigos, nos textos de não ficção que escrevo. O caráter ensaístico vira uma coisa muito mais fluida, ambígua.
G, L e M: Tem algo de muito cinematográfico na sua escrita: os cortes no texto, as descrições e as frases curtas, por exemplo. Solução de dois Estados, inclusive, é um livro que parece uma decupagem de documentário, cheio de silêncios e reticências nas falas dos irmãos durante as entrevistas conduzidas pela cineasta alemã. Nas suas colunas do Valor Econômico não é incomum que você fale de exposições de arte e mesmo livros sobre artes plásticas. Qual o papel do cinema, das artes e a forma do ensaio na sua escrita? Nos parece que existe uma contaminação entre esses gêneros nos seus textos ficcionais - de que maneira ela acontece?
Bom, tem vários modos de ver. Fui influenciado pelo cinema, que era a arte mais popular nos meus anos de formação, e pela TV, que era uma diluição de coisas do cinema com algumas particularidades (como a linguagem do videoclipe). Isso pode ter me dado um senso de ritmo que nasce dos cortes. Acho até que isso é mais presente do que propriamente a questão visual, porque esses romances todos são menos descritivos do que a média dos romances do nosso tempo. Por instinto ou por método (a esta altura é difícil dizer o que é o que), acabei desenvolvendo uma técnica que usa a descrição (e o detalhe em geral) só em determinados momentos da narrativa. Priorizo a ação. Os personagens no geral se referem a fatos concretos, mesmo quando estão em devaneios intimistas, e a partir desses fatos é que o sentido emocional aparece. As descrições entram aí só quando colaboram para que os fatos sejam mais bem descritos, e por consequência o sentido emocional apareça. No Passeio, por exemplo, a cena em que o Davi entra na casa do sogro pela primeira vez tem descrições que estão sempre grudadas à perspectiva do personagem: a contagem dos passos que indica o tamanho da casa, algo que pode soar meio estranho à primeira vista (quem faria uma coisa dessas?), dá conta de que Davi estava nervoso a ponto de chegar a esse nível de obsessão relativo à diferença de classe que ele tinha com Lia. Essa é a memória que ele tem daquele dia, e que o coro o ajuda a evocar. Tudo culmina na cena do sogro xingando o noticiário, enquanto a descrição - dos bronzes, madeiras, bambus, etc., algo mais generalizante, sem dizer o que eram aqueles objetos de decoração - se torna mais rápida, dando conta do crescendo da cena até o clímax (e do deslocamento da observação do Davi, que estava antes na casa e agora está no sogro).
Essas são questões técnicas, e ao mesmo tempo não são. Isso das frases curtas é algo que costuma ser dito dos meus livros. Mas às vezes é uma definição objetivamente errada. Eu fiz a leitura para a versão em audiobook do Diário da queda e volta e meia me via sem fôlego no meio das frases, que são enormes e têm uma sintaxe tortuosa, às vezes difícil de entender até para quem escreveu. Isso acontece porque esse é um livro que se propõe a imitar os mecanismos da memória, que não são lineares, às vezes aparecendo como fluxo. Já em Solução existem mesmo as frases curtas, em geral vindas do personagem Alexandre, porque ele fala de maneira menos articulada, em anacolutos, e aí a imitação da oralidade pedia essa pontuação mais frequente. Já a personagem Raquel é um pouco diferente, ela usa frases mais longas e sinuosas porque é muito articulada, uma artista acostumada a teorizar sobre a própria obra. Eu acho que a frase curta funciona quando é um discurso oral. Em Solução são essas entrevistas para o documentário; em Passeio, são os momentos em que Davi se dirige ao coro, porque aquilo é ele falando ao vivo, não lendo algo preparado ou coisa assim, e ao vivo ninguém fala em períodos intermináveis. Já em trechos mais descritivos, que funcionam às vezes como quebra de ritmo, inclusive, e há vários momentos assim em Passeio, a frase pode se alongar.
Quanto às artes visuais, e assim como no caso do cinema, vejo a influência em aspectos não necessariamente diretos, de linguagem. Comecei a escrever o Passeio em Berlim, onde passei um ano acompanhando minha ex-namorada, que estava fazendo parte do doutorado em artes por lá. Muitas das questões que ela estudava, e sobre as quais conversávamos em casa, com ela me indicando leituras e tudo mais, me puseram em contato mais direto e regular com o que hoje se chama de estudos decoloniais. Isso está bastante presente no Passeio - no debate sobre Israel, sobre identidades relacionais de um homem judeu branco, etc. -, claro que (de novo) filtrado pelos instrumentos da ficção.
G, L e M: Ainda em termos de forma literária, seu último livro, Passeio com o gigante, traz a depuração de um estilo de escrita que parece nascer em Diário da queda, uma forma em fragmentos cuja organização se dá a partir de uma numeração sequencial. Tal numeração, por sua vez, se organiza em capítulos, formato que você optou por deixar de lado em Solução de dois Estados. Qual o papel desses fragmentos-em-abismo na sua escrita e por que ele se mostrou a opção estética mais adequada para narrar romances que tentam dar conta da história contemporânea brasileira calcada na barbárie? Você vê um vínculo entre essa forma de narrar, mais fragmentada, e o que acontece hoje no Brasil?
No Passeio, eu tinha a ideia de fazer um livro cuja história sempre voltasse ao mesmo ponto, como um GIF, porque também era um livro sobre a pandemia, e a pandemia foi um momento em que vivemos uma espécie de presente eterno, com as coisas andando e não andando, uma mistura de tédio (por ficarmos em casa) e hiperestimulação (via noticiário e redes sociais). Isso acabou mudando à medida em que eu escrevia, porque ficava muito chato o formato, mas algumas coisas da ideia inicial permaneceram - as numerações dos capítulos que sempre começam com 1, o desfecho que volta ao ponto inicial (mas aí uma vez só, como um grande arco) e o subtexto (ou não tão sub assim) de que tudo aquilo pode ser um sonho que se repete todas as noites. Em Diário da queda é diferente, porque o livro é composto no formato de listas, ou falsas listas (porque cada fragmento tem sequência no fragmento seguinte). Já em Solução os fragmentos vêm da própria forma das entrevistas para o documentário, porque são perguntas e respostas (e cada uma é um pequeno bloco). Todos esses exemplos resumem, acho, o que para mim é sempre uma questão interna do livro, do que cada um desses livros quer dizer, e não um programa generalizante que tem a mesma resposta, a mesma ligação entre a arquitetura narrativa e realidade política exterior, independentemente da obra.
G, L e M: Em Passeio com o gigante há duas questões que nos parecem incontornáveis: a retomada de eixos fundamentais de dois dos seus livros mais importantes - o pastor Duílio de Solução de dois Estados, obra da qual o novo romance parece um irmão gêmeo, e o incidente escolar de Diário da queda, romance de virada na sua produção - e uma reflexão cada vez mais aguda sobre o judaísmo contemporâneo e seus desafios. A impressão é que há uma tentativa de balanço do seu próprio percurso na fatura do texto. Como seu último livro se relaciona com seu projeto literário e, aos 23 anos da publicação do primeiro romance, Música anterior, de que maneira você enxerga esse projeto?
Sim, existem essas referências - e várias outras, que deixo para quem ler encontrar, se conhecer os livros anteriores e tiver interesse nessas coisas. Cito uma que tem relação com a pergunta: o Diário é de 2011, e o presente do Passeio acontece em 2024 (seria assim mesmo se o livro tivesse saído antes). A diferença é de 13 anos, e 13 é a idade que marca a emancipação do menino judeu, como está descrito no Diário. Talvez se possa usar essa simbologia para fazer uma relação entre os dois pontos da minha carreira em que tratei do tema do judaísmo. Em 2011 o mundo era outro, mais otimista, em certo sentido mais ingênuo. De lá para cá, em paralelo a tantos horrores (inclusive os tratados no livro novo, como a pandemia e o governo Bolsonaro), houve uma intensificação das chamadas lutas identitárias, e isso entrou na literatura brasileira e mundial de maneira inédita. O problema do judaísmo (ou da judeidade) é uma questão identitária, tanto quanto o problema do racismo, do supremacismo branco, dos grupos nacionalistas de extrema direita e assim por diante. Depois da aliança de parte da comunidade judaica brasileira com a extrema direita, senti que seria omisso se não me pronunciasse mais diretamente a respeito. Achei que podia acrescentar às reflexões do Diário alguns fatores mais urgentes dos últimos anos - o governo fascistóide de Israel, a guerra, a política daqui. Foi um risco, porque seria mais fácil dizer que o Diário já trata disso em termos indiretos, talvez até alegóricos. Mas eu gosto desse risco - dando ou não certo no fim, durmo em paz por não ter fugido dele, porque era algo que me incomodava.
Claro que se pronunciar sobre isso na ficção não é um processo linear. As coisas sempre são mais sinuosas e incluem, ainda bem, uma autorreflexão a respeito. Lá pelo meio da escrita do livro, me dei conta de que o Diário termina com o anúncio da gravidez da esposa do narrador, e no Passeio o personagem lida com uma filha que nasceu com um problema. Isso pode ser um modo pessimista de ver os últimos 13 anos da nossa história, mas também um modo otimista, já que o personagem, ao menos nesse aspecto familiar, que corre em paralelo à manipulação política que ele faz da própria história pessoal em discursos, enfim, nesse aspecto ele é capaz de olhar para algo aparentemente negativo e tentar tirar dali um sentido otimista, de aceitação do problema da filha não como deficiência, e sim como diferença, identidade.
Voltando à pergunta, talvez esse seja um modo de eu ver a minha própria obra a esta altura. Tenho nove romances. Não gosto de todos, mas acho que até os menos felizes serviram para que eu pudesse escrever aqueles de que gosto. Eles me ajudaram com questões formais e com as próprias questões temáticas. É possível que na cabeça do leitor alguns livros se repitam. Não discordo disso, mas para mim a repetição nunca é total, tem sempre um pequeno deslocamento ali, um modo de pensar diferente sobre a mesma questão na qual pensei antes, e isso é um processo rico, de evolução minha como pessoa até. O Solução é um livro mais radical em alguns aspectos, as pessoas não conseguem ver muita saída nele, mas eu, na época, achava que o otimismo possível ali estava na fala da personagem Raquel - aquilo de continuar lutando pelo que se acredita, não importa se seremos derrotados ou não. O livro termina assim, e acho que foi o final adequado para uma época em que não parecia haver saída à vista. O lançamento foi em 2020, em plena pandemia e horror bolsonarista. Este de agora eu terminei em 2023, depois que o pior já tinha passado no Brasil, mesmo que a ameaça extremista continue aí e vá continuar por muito tempo. Então o otimismo possível agora, e até porque o personagem é alguém que aderiu a esse extremismo, é a ideia de que, quem sabe, alguém ainda possa mudar de opinião nesta vida - que a experiência real (no caso do Davi, a morte da esposa) ainda possa ser importante para tirar gente das gaiolas mentais construídas pela guerra cultural nas redes. A tal mudança de ideia do Davi por enquanto é só uma promessa, ele termina negando-a inclusive, mas o fato é que está no horizonte. Uma das ironias do livro é que isso tudo parece acontecer durante um sonho, um delírio, ou seja, talvez seja só aí (dentro de um romance, e um romance não exatamente realista) que alguém hoje em dia admita a hipótese de rever suas ideias. Mas já é alguma coisa. Quem sabe lá no futuro o livro possa soar mais realista.
G, L e M: Desde o começo da crise política no Brasil - que passa pelas jornadas de junho de 2013, a reeleição da Dilma em 2014, o golpe em 2016, a prisão de Lula, a eleição de Bolsonaro e a pandemia -, uma série de autores e autoras brasileiros começaram a tematizar esse refluxo político que inclui, dentre os fenômenos mais importantes, a radicalização e ascensão da extrema direita. Nos parece que - ao menos desde Solução de dois Estados e neste último, Passeio com o gigante - os problemas da polarização, do fascismo e de uma possível conciliação surgem como tópos significativos. Sabemos também que o Brasil tem uma longa tradição ligada ao ensaísmo que tentou e tenta dar conta dos problemas da formação nacional, dos embates entre o povo e as elites políticas e, ultimamente, do bolsonarismo. Por que falar sobre o Brasil de agora num romance e por que abordar essas questões na ficção, apesar da coluna que você mantém no Valor Econômico, com tema e formato livres? Você acredita que a forma do romance (ou ainda, a ficção) consiga dar conta de maneira mais eficaz do imbróglio político que testemunhamos?
Acredito que sim. Se não acreditasse, tinha largado a ficção. A forma da literatura normalmente é tratada como algo apenas técnico, mas está longe de ser isso. Quando se escolhe uma perspectiva em primeira pessoa, por exemplo, e se o texto for bom esteticamente, quem lê como que gruda nessa perspectiva, e isso cria um jogo de adesão/distanciamento interessante em relação ao que diz o discurso. É algo impossível de reproduzir num texto ensaístico - mesmo que fosse um ensaio irônico, digamos, porque mesmo aí as ferramentas e o efeito são outros. Ao falar dessa crise brasileira (e mundial) sob o ponto de vista de um extremista, se isso não for mera caricatura (e aí um artigo de jornal poderia fazer), dá para entrar em zonas cinzentas de compreensão do horror fazendo (com sorte) deslocamentos (por menores que sejam) na sensibilidade e no modo de pensar de quem lê. Não muda o mundo, mas quem sabe mude a compreensão sobre o mundo, nem que seja discretamente, na sensibilidade de meia dúzia de leitores. Isso muda também a minha própria sensibilidade, já que escrever sobre esses personagens também é, em algum nível não caricatural, e pelo menos em alguns momentos, me botar no lugar deles - e, como efeito, entender o problema de outro modo. Tanto no caso do Solução quanto no Passeio não é uma voz só que fala, como comentei numa resposta anterior. No Passeio, essa polifonia/multiplicidade me permite entrar nos temas do livro (identidade, culpa, perdão, história) com mais armas (ou menos desarmado, paradoxalmente). Isso é o legal da ficção. A imprevisibilidade do resultado, inclusive, enriquece o processo. Se escrevo um texto no jornal me posicionando contra o massacre em Gaza, não tem muito como e nem por que ser ambíguo. No máximo eu vou citar argumentos contrários e desmontá-los, o que é uma operação retórica linear.
G, L e M: Para finalizar, gostaríamos de entrar num tema um pouco mais delicado e complexo. No ensaio “Notas sobre uma pixação”, publicado em abril de 2018 na revista Piauí, o documentarista João Moreira Salles se vale da frase “Não fui eu”, que tomou os muros da cidade do Rio de Janeiro alguns anos atrás, para propor uma reflexão sobre inocência, culpa e responsabilidade. Sobretudo no Brasil, Salles argumenta, é muito comum a postura do “isso não me diz respeito”. Em Passeio com o gigante, quando Davi se vê pressionado a acertar suas contas com o coro no hospital, cenário que atravessa o livro quase por completo, parece temer sacrificar sua posição social, sua estabilidade financeira e a segurança de sua família, e justifica sua colaboração/omissão com o negacionismo e a radicalização de direita pelo trabalho do instituto que administra e financia e pela condição da filha excepcional, enquanto o coro acusa: “Foi você, mas você pode se retratar”. Do ponto de vista político, tema incontornável do seu último romance, como você enxerga essa relação entre culpa e responsabilidade, sobretudo pensando o bolsonarismo como fenômeno? Você acredita que uma retratação, tal qual pensada no romance, é possível?
Sim, esse é um dos temas do livro. O dilema que o Davi tem, de se pronunciar ou não sobre o que aconteceu, de enfrentar o problema, com os custos emocionais e materiais que isso envolve, pode ser lido do ponto de vista ideológico oposto: como o dilema de todo mundo que tem amigos, chefes, contatos de trabalho que aderiram ao bolsonarismo. A primeira pergunta de vocês foi sobre questões biográficas, e, bem, essa é uma questão biográfica importante. Antes da eleição do Bolsonaro eu decidi me pronunciar a respeito, citando diretamente a questão judaica e sabendo que, por causa disso, eu poderia perder amizades de infância, leitores do Diário da queda, admiradores dentro da comunidade. Mas paciência, eu fiz porque achava que era o certo, e acho que isso foi importante para mim (para os outros, não tenho como saber). Eu ter escrito o Passeio faz parte desse processo.
Sobre a retratação, acho que tem uma sutileza aí. O livro cita algo da doutrina religiosa judaica, das fases do luto no Yom Kippur, que é o dia do perdão. Há muitas interpretações em cima disso, claro, como tudo no judaísmo, mas uma delas diz que a fase última desse caminho é a justiça, botar de volta aquilo que foi tirado do lugar. Então, como diz o coro em certa altura, só o arrependimento (a retratação) não serve. Davi precisa ir além disso, fazer algo concreto para tentar remediar o estrago que causou (e que ele mesmo sabe ter causado, embora relute em admitir). Por isso existe também o paralelo com a igreja neopentecostal, isso vai além da questão de Israel e da política partidária. Porque para os evangélicos dessa linha tem muito aquela coisa: você fez algo de errado no passado e conserta no presente. Não é só se confessar e ser perdoado de graça. O Davi tem dinheiro e pode usar o dinheiro para ajudar pessoas que sofreram pelas escolhas dele. Não resolve tudo, até porque nada jamais vai resolver tudo (essa é a condição humana), mas de novo: já é alguma coisa. Ter esperança é lidar com os limites da esperança em cada época, na vida de cada pessoa.
Referências
- LAUB, Michel. Animais. In: LAUB, Michel. Granta 9: Os melhores jovens escritores brasileiros. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2012. p. 11-24
- LAUB, Michel. Diário da queda São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
- LAUB, Michel. Música anterior São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
- LAUB, Michel. Não depois do que aconteceu Porto Alegre: Instituto Estadual do Livro, 1998.
- LAUB, Michel. Passeio com o gigante São Paulo: Companhia das Letras, 2024.
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LAUB, Michel. Um escritor na biblioteca - Michel Laub. Cândido, Curitiba, 2013. Disponível em: Disponível em: https://www.bpp.pr.gov.br/Candido/Pagina/Um-Escritor-na-Biblioteca-Michel-Laub Acesso em: 30 Jun. 2024.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
15 Nov 2024 -
Data do Fascículo
Sep-Dec 2024
Histórico
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Recebido
15 Maio 2024 -
Aceito
18 Jun 2024