A crueldade é uma das mais antigas alegrias da humanidade. Friedrich Nietzsche - Aurora
Os que andam com os mortos, primeiro livro impresso de contos para adultos de Zemaria Pinto (Santarém-PA, 1957), está composto por 30 textos ambientados na Amazônia dos últimos 75 anos. O próprio autor assinala que os quatro últimos poderiam ser intitulados “contos da pandemia”. Para justificar o subtítulo de Os que andam com os mortos - “fábulas cruéis e outras estórias más” -, numa breve, lúcida e humilde nota de autor, Zemaria Pinto escreve que “este é apenas um livro de contos amazônicos”, que parte da acepção nietzschiana da crueldade: “pretende apontar o sofrimento individual, causado por motivação externa, como ponto de partida para entender o sofrimento coletivo” (Pinto, 2024a, p. 7). Também expressa o sentimento essencial que quer incutir no leitor - desconforto - em ocasiões através ironias e intertextos de fábulas ou obras literárias, como no verneano “Viagem ao ventre da floresta” ou em “A metamorfose”, nos quais se revisa, recria ou homenageia a genial obra de Franz Kafka.
A segunda epígrafe da introdução, “Gênero”, é especialmente reveladora. O amazonense se serve de uma definição de Mário de Andrade - “Em verdade, sempre será conto aquilo que seu autor batizou com o nome de conto” (Pinto, 2024 a , p. 9) - para explicar que a usa neste livro no sentido original:
O conto não se limita à aparência - pode parecer crônica; pode parecer notícia de jornal; pode parecer entrevista; pode parecer ensaio; pode parecer crítica literária; pode até parecer poesia; e também, eu acrescento, pode parecer roteiro (de teatro ou de cinema). (Pinto, 2024 a , p. 8).
Efetivamente, os gêneros que o autor assinala - e alguns outros, como veremos - podem ser lidos no híbrido e heterogêneo Os que andam com os mortos. A unidade do volume vem dada, portanto, por estar constituída por trinta “narrativas curtas de ficção, com poucas personagens, tempo e ação muito concentrados, passados em um espaço limitado” (Pinto, 2024 a , p. 9), conclui o também professor de Teoria da Literatura.
Vejamos alguns dos contos que estão constituídos por elementos que, convencionalmente, formam também parte de outros gêneros:
O próprio título “Entrevista com um patriota” revela as conexões do conto com a entrevista. Se a intenção do autor com esse livro foi provocar o desconforto no leitor e levá-lo a refletir sobre os motivos do mesmo, só posso parabenizá-lo, pois os preconceitos estereotipados do antigo soldado e colonizador português que, em sua opinião, serviu com dignidade à sua pátria, me incomodaram enormemente: assassino, torturador, racista, machista, estuprador... De suas atividades militares em Angola, chega a afirmar que “O mais divertido era o lançamento de morteiros sobre aldeias”. “Civis?”, questiona o entrevistador, ao que responde: “Claro, era tudo a mesma canalha. Como íamos distinguir quem era guerrilheiro de quem não era? Meu helicóptero era equipado com metralhadoras, acionadas pelo copiloto. Era bonito de se ver a negralhada caindo lá embaixo” (Pinto, 2024 a , p. 25). No texto também há lugar para um episódio de pederastia e abusos continuados, quando afirma que comprou Dolores, uma negra retinta de doze anos, virgem, que quase não falava e em que batia “Só quando necessário”, até ela compreender seu papel no mundo.
Algumas estórias apresentam caraterísticas próprias de notícias de jornal ou de crônicas como no parágrafo final de "Primeiro de abril de 1964", em que ocorre uma revisão histórica e uma posição política é apresentada:
No ano seguinte, comemoraram o primeiro aniversário da “revolução” no dia 31 de março. Alguns comemoram até hoje. Mas a mim nunca me enganaram: o golpe militar - que interrompeu o processo democrático por vinte e um anos e torturou e assassinou centenas de brasileiros - aconteceu mesmo, de fato, no dia da mentira. E eu fui testemunha (Pinto, 2024 a , p. 32).
Há também contos, como “Alívio imediato”, “Liturgia” ou “Delirium”, que apresentam uma estrutura clássica de introdução, desenvolvimento e conclusão. No último caso, “a maldição daquela vaca” que o abandonara quase cinco meses antes estava se concretizando e o delírio que sofre o alcoólatra crônico, caracterizado por uma grande agitação e alucinações ameaçadoras - e que ele considera consequência de ter comido uma sopa congelada -, leva-o a concluir irônica e terrivelmente: “Minhas mãos tremem, do susto, certamente. Devo tomar cuidado para não quebrar nada. É minha última garrafa, preciso renovar o estoque” (Pinto, 2024 a , p. 35).
Ainda que o autor assinale que O conto “Viagem ao centro da floresta” é um poema dramático, em verso livre - algo lógico, pois inclusive aparecem poemas -, pode ser também considerado um roteiro de teatro ou de cinema. Diversos personagens viajam em um barco de Manaus a Santa Isabel do Rio Negro, sem ter certezas dos motivos pessoais de sua viagem, apenas alguns adivinham os de suas fugas. Em quinze cenas breves e dialogadas apresentam suas atitudes vitais, às vezes interesseiras e contraditórias, como a conversa no bar, entre a prostituta madura Rubi e o cabeleireiro Heitor (gay afetado, maduro), na cena 2:
- Por que não faz como eu? Tenho uma profissão: sou cabeleireira. Não preciso de homem, não, não, não, não, não.
- Ah, não precisa, é?
- Homem não é item obrigatório na vida de mulher pobre. Homem é só diversão!
- Pois pra mim é ganha pão (Pinto, 2024 a , p. 41).
Em outras cenas, destaca-se a toxicidade e a impiedade das vozes ante os comentários dos outros viajantes. “Que mulher oferecida! Sossega o facho, perua. Vais cozinhar para os padres!”, comenta Heitor, provavelmente, depois que a cozinheira madura Gilda tivesse falado que, com a filha casada e os netos estudando, agora quer paz na vida, “E ainda dou um bom caldo...”; ou quando se critica o corpinho “desmilinguido” da doméstica jovem e magra Creuza; ou afirma-se com ironia “Estou até comovida”, para concluir radicalmente: “É pena que dessa fruta não goste nem do caroço...” (Pinto, 2024 a , p. 48). Seguindo a estrutura de um roteiro podem se ler (ou ver) “Poema da mulher sem rosto” - neste caso, de cinema - e “Conversa de bastidores” - neste caso, de teatro.
No conjunto da obra destacam-se pelo seu número várias fábulas cruéis - lógico se lembrarmos o subtítulo da obra: “A cigarra e a formiga”, “A raposa e as uvas”, “O gato e o rato” ou “O elefante e a formiguinha”, onde um paquiderme acostumado a satisfação e o carinho “que só aqueles que praticam boas ações cotidianas conhecem” provoca a que o inseto se pergunte “como seria namorar com um cara tão distinto, tão elegante, tão nobre...” (Pinto, 2024 a , p. 38). Porém,
O elefante, ainda sob o efeito da embriagadora felicidade que só uma verdadeira boa ação proporciona a quem a pratica, respirou fundo, sentiu o ar puro da floresta, observou a coreografia colorida das borboletas, ouviu extasiado a polifonia dos pássaros, deu um pequeno salto e correu na mesma direção da formiguinha, que, ao perceber que a terra trepidava, ainda teve tempo - sua última visão - de ver a pata dianteira direita de seu amigo descer, funesta, esmagando seu frágil corpinho (Pinto, 2024 a , p. 38).
Além da evidente conexão com a fábula, “A raposa e as uvas” conecta comicamente com o ensaio e a crítica literária, incluindo notas de rodapé que procuram a cumplicidade do leitor.
Além disso, há espaço para as referências às lendas ou os contos infantis como motivo inicial para desenvolver os textos. Assim acontece em “Foi boto, sinhá”, que aborda a gravidez inexplicável ou a responsabilidade do Boto em pleno século XXI, ou em “Branca de Neve e alguns anões” e “A bela adormecida”. Neste último, uma menina “ainda adolescendo” recebe dezoito facadas. Num final cinematográfico, quando chega o investigador da Polícia Civil, que mora na mesma rua, perguntando se alguém tinha visto o assassino, a menina “levantou-se - e o indicador apontou, articulado com as palavras que saíam de sua boca ensanguentada, como num sopro: - Foi ele... Foi ele...” (Pinto, 2024 a , p. 59). -
Uma caraterística da escrita de Zemaria Pinto é o humor, e não só em sua obra de criação. Em seus ensaios, por exemplo, são habituais as brincadeiras com o leitor, produto de uma cumplicidade íntima com os textos literários abordados e as perspectivas teóricas desenvolvidas, que lembram o preceito horaciano de se divertir ensinando. Estou pensando agora mesmo em O texto nu (2024b), um excelente ensaio didático que todo estudante de letras deveria ler. Mas voltemos ao nosso livro com algum exemplo humorístico zemariapintino: Em “O gato e o rato”, os dois inimigos decidem estabelecer um pacto: o rato perseguirá o gato às segundas, quartas e sextas e o gato perseguirá o gato às terças, quintas e sábados. O domingo será dia de descanso:
E, como era domingo, os dois se abraçaram e juntos foram à sinagoga (o gato era judeu) e em seguida a um templo evangélico (o rato era cristão). Depois foram à praia, tomaram chope, comeram churrasco - aquelas coisas que os medíocres fazem aos domingos. (Devo esclarecer que medíocre quer dizer mediano, comum - na acepção usada, “pessoa do povo”. Eu disse pessoa? Perdão, gato. Perdão, rato.) Atendendo aos interesses de ambos, eles encontraram o justo equilíbrio. E viveram felizes até a morte do rato, por envenenamento. O gato entrou em depressão profunda e tentou o suicídio por várias vezes. Na sétima, conseguiu (Pinto, 2024 a , p. 95-96).
Um conto deixou em minha boca um sabor diferente, “A paixão de Antônio Mocinha”. Em minha opinião ou gosto pessoal, o melhor e mais marcante do livro. Vejamos a formosíssima e memorável descrição do protagonista:
Antônio Mocinha ganhou esse apelido por pura inveja do resto da molecada. Mocinha era bonito, tinha olhos agateados, cabelos loiro-acinzentados e uma raríssima pele branca que ficava cor-de-rosa ao sol. Diziam que era a cópia da mãe, levada para Manaus ainda criança. As meninas se esfregavam nele, literalmente, enquanto a gente lambia os beiços. Mocinha nunca se importou com o apelido, pelo contrário, orgulhava-se dele, porque tinha consciência da razão. Seu avô Raimundo Onça é que não gostava. Dizia que era coisa de fresco. Mas não havia frescos em Andorinhas, e Mocinha não haveria de ser o primeiro (Pinto, 2024 a , p. 51).
O caçador Raimundo Onça fazia parte da lenda: se contava que um velho pajé-onça “o amaldiçoou a virar onça, para conhecer o sofrimento dos animais. Mas apenas os olhos se transformaram” (Pinto, 2024 a , p. 52), pelo que sempre usava óculos escuros. Uma noite não encontrou o neto em casa e descobriu que tinha sido visto com o cachaceiro Carioca, um suposto ex-jogador de futebol que falava excelências do talento esportivo de Mocinha e que gostava de “treinar umas técnicas de goleiro” com o menino. Não os descobrindo em casa, o velho decidiu entrar na floresta sozinho. Essa madrugada se escutou “o rugido tenebroso de uma onça” ferida de morte. Na manhã seguinte, o corpo de Mocinha foi encontrado - “com o rosto na terra escura, imerso numa poça de sangue, tinha um só corte, largo e profundo, no pescoço, acompanhando toda a extensão frontal” (Pinto, 2024a, p. 53) - e os despojos de Carioca: “o corpo rasgado ao meio, expondo as vísceras dilaceradas; os olhos, arrancados; o órgão sexual, esmagado” (Pinto, 2024a, p. 54). Nunca se soube o que aconteceu com Raimundo Onça. A estória conclui informando que há um pequeno monumento em Andorinhas a Antônio Mocinha, com “seu nome completo e datas de nascimento e morte, entre as quais transcorreram não mais de doze anos e alguns meses” (Pinto, 2024a, p. 54).
Iniciei meu texto chamando a atenção sobre a consideração que Zemaria Pinto tem sobre Os que andam com os mortos: “este é apenas um livro de contos amazônicos”. Como terão entendido os que leram minhas palavras, discordo completamente com o autor. Os que andam com os mortos é uma joia rara, um livro que, partindo do desconforto que seus contos cruéis suscitam, provoca uma intensa e profunda reflexão de carácter transcendente e universal em qualquer tipo de leitor, que o obriga a se enfrentar com seus medos, suas inseguranças, seus preconceitos e, também, seus desejos. Recomendo vivamente a leitura desta obra.
Referências
- ANDRADE, Mário de. Contos e contistas. In: ANDRADE, Mário de. O empalhador de passarinho Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012. p. 9
- PINTO, Zemaria . Os que andam com os mortos Manaus: Valer, 2024a.
- PINTO, Zemaria . O texto nu - Teoria da literatura: gênese, conceitos, aplicação Manaus: Valer , 2024b.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
15 Nov 2024 -
Data do Fascículo
Sep-Dec 2024
Histórico
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Recebido
21 Mar 2024 -
Aceito
19 Abr 2024