O ensaio Poética da relação, do poeta, escritor, pensador e ativista martiniquense Édouard Glissant (1928-2011), chega aos leitores brasileiros 21 anos depois de seu lançamento em Paris, em 1990, graças à editora Bazar do Tempo. O livro, organizado em cinco partes com seus respectivos subtítulos, se debruça sobre a complexa formação cultural do Caribe; tema que o autor desenvolve ao longo de toda a sua produção ensaística. Nesta ocasião, Glissant condensa os aspectos principais dos conceitos de Relação, opacidade e crioulização que sustentam todo o seu pensamento. A publicação, como bem expressa Ana Kiffer no prólogo, tenta preencher uma lacuna a respeito da distribuição no Brasil da produção não só de Glissant, mas também de outros pensadores caribenhos.
Talvez, seja prudente alertar ao leitor, desde já, que a Poética da relação é um livro complexo que dialoga com toda a sua obra anterior. Encontraremos, por tanto, pegadas de Le discoursantillais (Glissant, 1981) e de Introdution à une poétique du Divers (Glissant, 1996). Dialoga também com trabalhos de outros pensadores caribenhos que o antecederam como Franz Fanon (1925-1961), Fernando Ortiz (1881-1969), assim como com obras literárias da região e com autores contemporâneos seus, como Benítez Rojo (1931-2005) ou Kamau Brathwaite (1930-2020), sendo, então, uma excelente oportunidade para o leitor brasileiro se familiarizar com o ponto de vista de Glissant não só como um fato isolado, mas sim como um conjunto em Relação com outras leituras do e sobre o Caribe.
Também podemos apontar como desafio o estilo da escrita do autor. Fiel a sua proposta de caos e Relação, temos um livro que vai e vem em fluxos e refluxos, em tomadas e retomadas. Carente de linearidade e de conclusões, os tópicos dos capítulos se entrelaçam e se projetam, dando a impressão de arremesso e inacabamento; tal como propõem suas ideias. Esta resenha tenta conservar a entropia, a abertura e a Relação do texto resenhado, traçando uma estratégia que articula conceitos chaves - Relação, opacidade e crioulização - com a totalidade da sua obra e com os pontos de vista que Glissant sempre defendeu.
Outra das complexidades da Poética da relação é a sua riqueza referencial que o autor deixa por nossa conta; o que, por um lado, exigirá um vasto conhecimento da tradição literária e filosófica caribenha ou, sem dúvida, deixará ilegível o sentido em que os conceitos são apresentados, em caso de um leitor menos conhecedor. No caso de um leitor curioso, é uma excelente janela de entrada para outras obras e autores que têm deixado grandes contribuições tanto na literatura como nas reflexões críticas. De qualquer maneira, é importante esclarecer que a obra de Glissant se reconhece no chamado pensamento arquipelágico que, de “certa maneira”1, começa se gestar na leitura transcultural de Fernando Ortiz (1940) no já clássico Contrapunteo cubano del tabaco y el azúcar e que chega ao seu auge com Benítez Rojo e com o próprio Glissant.
A visão arquipelágica do Caribe, grosso modo, se propõe a retirar a reflexão eurocentrista sobre a região que interpretava as configurações culturais das ilhas como mera assimilação e imitação das dinâmicas das metrópoles. Pensar na perspectiva arquipelágica pressupõe partir da hibridação, da multiplicidade, assim como também supõe pensar no sistema de plantação e considerar as ilhas como o lugar de passagem que propicia o fluxo entre os continentes. Significa observar tudo aquilo que se escapa ao controle, primeiro, das organizações e do controle coloniais, e depois, o que escapa à tentativa de formação de Estados-Nação segundo o modelo europeu. A ideia de arquipélago serve de alicerce para falar em conjunto, mas não de forma compacta, senão de forma fragmentada, exposta ao devir e que conserva a Relação.
Para introduzir sua ideia de Relação, Glissant se afasta do Caribe, se introduz no continente africano e vai até o momento anterior ao barco negreiro. Para ele os inícios desse longo processo se encontram nas terras africanas, quando as pessoas foram retiradas das suas tribos ou comunidades para serem aprisionadas à espera de um barco. A noção de Relação começa nos eixos do desconhecido, do abissal e da escuridão: “A primeira escuridão foi ser arrancado do país cotidiano, dos deuses protetores, da comunidade defensora” (Glissant, 2021, p. 29). Com essas palavras o autor começa a colocar os fundamentos que darão sustentação a um raciocínio que prioriza a presença compartilhada de todas as realidades e todas as línguas numa referência à totalidade sem exclusões possíveis.
No início da Relação, propõe o autor, se encontra um abismo diante do desconhecido em vários momentos. O primeiro momento é o ventre da barca: a tortura, o vômito, a carne viva. Depois vem o abismo - a solução para qualquer perigo que ameaçasse a sobrevivência do navio era jogar a “carga” ao mar. A outra forma do abismo é o acesso ao abandonado, o forçosamente deixado para atrás apenas pela lembrança, pelo relato, pelo trabalho da imaginação. Ademais, chegar à terra não significou uma apropriação de algo novo, já que chegar em condição de escravos não alivia o abissal das circunstâncias. Circunstâncias estas que marcam o começo das configurações sociopolíticas, históricas e culturais das ilhas do Caribe. Os povos que frequentaram o abismo: “vivem a Relação, que eles semeiam conforme o esquecimento do abismo lhes vem e na mesma medida em que sua memória se fortalece” (Glissant, 2021, p. 32).
Isto é, a Relação é colocada numa espécie de movimento entre o esquecimento, a refiguração e a memória que se projeta e forja novos frutos. Movimento que vai ser explicado a partir da errância e do conceito deleuziano de rizoma2: “O pensamento do rizoma estaria no princípio do que eu chamo de poética da Relação, segundo a qual toda identidade se desdobra numa relação com o Outro” (Glissant, 2021, p. 34). Não se trata de uma raiz única que aglutina tudo ao seu redor, mas sim da possibilidade de criar linhas de fuga que possam se espalhar sem a necessidade de um tronco hierárquico. Neste sentido, Glissant traça as diferenças entre nomadismo, exílio e errância. Sendo que, tanto nomadismo quanto exílio são deslocamentos que conservam polos, no sentido de saída e de chegada. A errância é a transgressão da raiz, é o axioma do relativo, dialético que surge da desestruturação das “compacidades nacionais”.
Assim, para quebrar as compacidades, para que haja Relação, é preciso que “Um” e Outro não se opunham totalmente, não contrastem inteiramente, mas que ambos reduzam seus brilhos para poder captar um pouco do que o Outro tem, traz. Ou, melhor dizendo, para deixar o Outro entrar. Precisa-se de opacidade, i.e., deixar algo sem mim, algo opaco para poder preenchê-lo com algo do Outro. Vejamos, não se trata da ideia cristã de aceitação do Outro ou de dar e receber, trata-se de entrar numa interação dialética com o outro da qual surge para ambos um algo novo, diferente, que vai continuar o fluxo de interações e mudanças infinitamente, que se endereçam para a totalidade. Trazendo a opacidade e a Relação para a configuração das identidades (plurais) caribenhas, Glissant se opõe à ideia clássica ocidental do Ser como algo único, centrado, previsível. Trata-se, pois, de um indivíduo incompleto e mutante segundo as relações que consiga estabelecer com o Outro e com as contingências do entorno.
Opacidade - o conceito que acompanha a Relação - é um processo resultante das conjunturas sócio-históricas que envolvem a configuração cultural das ilhas do Caribe. O que inclui, sendo quase “vulgarmente” breve, a) a remoção forçosa de homes e mulheres de seus lugares de proteção; b) o empurrão para o ventre de uma barca - abismo que igualava a todos na imundícia, na tortura e no desconhecimento; c) a chegada ao mercado - terra em condição de objeto vendível, trocável; d) a entrada na senzala e, com isso, se converter na engrenagem primeira e primária da poderosa máquina da Plantação. Trata-se de todo um processo que se inicia na tentativa escravocrata e colonial de aniquilação física, moral e psicológica do ser, que configura, indefectivelmente, a subjetividade dos “novos povoadores” das ilhas. Há também neste processo uma consciência de se assumir como um ser configurado sob ditas circunstâncias e essa consciência é a possibilidade de subversão e de esperança em um algo melhor.
Na Poética da relação, Glissant retoma as coordenadas principais do sistema de Plantação quanto à formação cultural do Caribe. A Plantação impõe (por cima) um sistema regrado, fechado e piramidal, com limites claros para cada um dos que o compunham. Entre a ponta da pirâmide (dono e sua família) e os escravos existia uma série de funções a serem cumpridas estritamente (administradores, capatazes, criados etc.). Ora, o sistema, controlador nas capas externas, falha nas capas internas; não consegue controlar as relações que se estabelecem nas senzalas, nem nos quartos dos/das criadas. Controla o movimento, as tarefas, mas não chega até os afetos, as subjetividades, as línguas, as memórias; e é nessas brechas deixadas pela fiscalização que se dá a opacidade e, por tanto, a Relação.
Na segunda parte, intitulada Elementos, Glissant faz um giro para as línguas que lhe permite aprofundar no que ele chama de pensamento da errância (relativo) e nos desdobramentos do Barroco e sua importância para explicar o processo de crioulização; outro de seus conceitos chaves. A propósito da errância, ao não haver uma raiz dominante, os elementos entram em relação e esse contato possibilita a novidade. No entanto, para que se dê a Relação com maiúscula, o contato precisa de opacidade (que se opõe à diferença). A retirada do “brilho” de si pressupõe uma abertura ao Outro e à totalidade. Lembremos que para Glissant, não só nesse ensaio, mas em toda sua obra, não há nada desconexo no universo, então, línguas, culturas, identidades e subjetividades não estão circunscritas ao território unicamente.
Talvez valesse elucidar minimamente essa oposição à diferença - termo tão caro à teoria decolonial e pós-estruturalista. Na différance3 reivindica-se a natureza híbrida da identidade, a incompletude, o fim dos binarismos; enfim reivindica-se a existência constante da alteridade e a importância de garantir que exista fora do submetimento. Glissant, sem negar a importância dessa proposta, propõe um pensar um tanto mais radical e, por sua vez, mais utópico: a opacidade. “Quiero tener derecho a la opacidad, es decir, que no me sea necesario entender lo que soy, que pueda sorprenderme de mí mismo”, diz Glissant numa conversa com o poeta de Barbados Kamau Brathwaite, em 2008, na universidade de Maryland, Estados Unidos4. Enfim, não se trata de aceitar o Outro na sua diferença, se trata de um tipo de abertura em que não se sabe até que ponto o eu e o Outro estão diluídos entre si. Se trata também de um tipo de movimento entre as identidades, uma “errância” - tópico este tão valioso para o seu pensar.
A ideia de movimento senta as bases para falar da relatividade e a instabilidade das relações e para quebrar a dicotomia de Um vs. Outro. O que lhe permite voltar uma e outra vez a opacidade: elementos, características, sintomas, etc. que entram em contato de forma caótica e a partir dos quais se forma algo novo tanto em um como no outro, mas não interessa de onde vieram esses sintomas, atributos, etc., nem aonde vão, nem o que pertence a um ou ao Outro. O que está em jogo é a dialética dos encontros, a instabilidade, o que deles surge e a possibilidade de se juntar infinitamente, daí sua abertura à totalidade. Talvez a forma mais eficaz de entender esse dinamismo e essa abertura esteja na análise que ele faz das línguas no Caribe. Glissant faz uma diferença entre transparência e opacidade, sendo a opacidade a que possibilita uma poética, no sentido de renovação.
As línguas regradas pela academia (francês, espanhol e inglês) e pela gramática, os signos de pontuação, os dicionários que delimitam, ordenam os significados e controlam neologismos são línguas transparentes. A transparência exige o entendimento de todos e que todos a conservem para um bem maior, a compreensão coletiva. Contudo, o que garante a vida, a revitalização de uma língua, é sua capacidade de existir fora dessa regra, isto é, a opacidade. A possibilidade de garantir a subversão das regras, a criação de novos significados, de neologismos, de novos giros linguísticos. Opacidade tem a ver com a transformação dos restos de todas as línguas que se falam e a conformação de línguas vernáculas, tem a ver com o creole, o patuá, o papiamento e todas as variantes que surgem no Caribe.
Os subtítulos “De um barroco globalizado” e “Transparência e opacidade”, (p. 105 e 140, respectivamente), estão estreitamente relacionados com a ideia de línguas e culturas atávicas e compósitas. Esses dois conceitos aparecem em Introdution à une poétique du Divers, publicado em francês em 1996 e traduzido e publicado em português como Introdução a uma poética da diversidade pela editora da Universidade Federal de Juiz de Fora em 2005. Línguas e culturas compósitas é uma classificação em que se contrapõem as culturas dos continentes (atávicas) e as línguas e culturas das ilhas do Caribe (compósitas). As culturas atávicas se desenvolvem a partir da relação com a territorialidade, com uma língua transparente, com os mitos fundacionais, etc. Glissant não faz diferença entre as culturas atávicas ocidentais e as culturas atávicas do continente latino-americano (incas, astecas, mais, mexicas, etc.).
Tanto as ocidentais quanto as ameríndias estão intrinsicamente vinculadas ao território, aos mitos e destinos dos respectivos povos. Sua língua, portanto, precisa da transparência, ou seja, de uma legibilidade ao redor da qual se construa um senso de coletivo. Porém, o Caribe é composto, por um lado, por uma massa heterogênea de indivíduos, e por outro, por um conglomerado de ecos de línguas e dialetos vários chegados de todas as partes que se integram com os que já existiam antes da colonização. Consequentemente, essa mistura de ecos provenientes de uma multiplicidade de línguas é o que faz com que elas sejam opacas e, por tanto, dinâmicas e imprevisíveis.
De fato, sílabas, palavras, ritmos, sussurros, interjeições daqui, de lá e acolá entram em contato subvertendo as línguas “civilizadas” e conformando um imprevisível “concerto barroco” - como ele mesmo assiná-la. Lembrando que a referência é ao romance do mesmo nome, escrito por Alejo Carpentier (1987), publicado pela primeira vez no México, em 1974, que não é mencionado no texto. A nossa insistência em conservar a referência vívida se deve aos vínculos entre Barroco-opacidade-Relação na proposta de Glissant. Sendo assim, sob a dominação e a opressão da Plantação, no lugar coisificado da senzala e dos trabalhos forçados, à margem de qualquer dinâmica de liberdade existe engajamento, vida, palavras e ações que vão estremecer o sistema todo. O sistema é furado e perfurado por desvios constantes, desvios para burlar as normas, para sobreviver, para planejar fugas, para se expressar, para se fazer ou não entender, segundo as circunstâncias.
Deste modo, nessas contingências de exploração e subversão, se esboça o desvio Barroco das línguas das ilhas, que vai conformar as literaturas do Caribe - disse Glissant, seguindo a linha de raciocínio de outro caribenho: Benítez Rojo, quem aponta para a necessidade de falar em literaturas no ensaio La isla que se repite. Historicamente, continua Glissant, o Barroco foi uma reação contra uma ordem que se considerava natural; um oposto às regras instituídas. Mas, nas ilhas, esse “oposto” se dá em termos de Relação: dinâmicas que se dão no “submundo” da Plantação, nas capas excluídas do poder; a língua, a música, as artes em geral, deixam de ser um oposto total para ser inovação. Inovação nutrida de todos os elementos que se encontram no entorno, onde nada se descarta; o todo e tudo se superpõe, se soma: “A arte barroca deixa de ser por oposição, ela consagra uma visão inovadora (em breve uma outra concepção) da natureza, ajustando-se a seu acorde” (Glissant, 2021, p. 106).
Consequentemente, o Barroco das ilhas é um mergulho em estilos, línguas, culturas e cosmovisões. Ele não é uma reação, mas um resultado da mestiçagem no sentido amplo, isto é, não só raças, mas também subjetividades, formas de viver. Enfim, é “a resultante de todas as estéticas, de todas as filosofias. Por conseguinte, ele não afirma apenas uma arte ou um estilo; mais além, ele provoca um estar-no-mundo” (Glissant, 2021, p. 106). Um estar-no-mundo descentrado, no devir, na relação com outros e com as mais diversas conjunturas que não necessariamente acontecem na vizinhança. Glissant fala em totalidade e nela entram não só os vaivéns sócio-históricos e as guerras do mundo, mas também as catástrofes naturais, os achados, etc. que acontecem em quaisquer latitudes.
Vaivéns, atritos, trocas que fazem parte do que ele chama de processo de crioulização - termo que não existia em francês e que ele toma do poeta barbadense Edward Kamau Brathwaite. Brathwaite (1979) observa a crioulização como um fenômeno dentro do processo de aculturação que se dá nas ilhas anglófonas do Caribe. Trata-se da tensão entre a adaptação e a rejeição que se forja entre as distintas camadas sociais dos dominados e os dominantes e o surgimento de formas novas não só de expressão, mas de comportamento, de imaginários. Formas essas que escapam à norma e ao controle, formas soltas que não configuram padrões. Todavia, enquanto Brathwaite pensa esse fenômeno como uma formação do passado, Glissant quebra essa temporalidade e coloca esse embate dialético e frutífero não só no presente, mas também além do Caribe.
Se bem diz Glissant, as línguas crioulas surgiram a partir de uma necessidade de comunicação entre pessoas que não falavam a mesma língua sob o sistema de Plantação, os constantes contatos entre as pessoas do mundo todo, seja lá por quaisquer razões, fazem com que as mais diferentes línguas, costumes e subjetividades interajam entre si. Trata-se de uma forma de reinventar a língua fora dos moldes acadêmicos preestabelecidos. O mundo se criouliza, as culturas estão cada vez mais expostas ao contato, inclusive violento, e estes contatos provocam alterações, marcas de umas em outras, de uns em outros. Crioulizar é afrouxar fronteiras e rigidezes, é se abrir passo e espaço entre a diversidade, cientes de que existe uma totalidade-terra em que não há autoridades orgânicas, mas sim Relação.
Cabe enfatizar que quando se fala em Relação não se fala nos opostos dominantes versus dominados, nem se fala em passividade versus revolta. Fala-se em arranjos que desestabilizam as normas, o esperado, o estabelecido pelos que dominam, fala-se em modos de resistir e construir novas maneiras de estar no mundo e fazer o mundo. São desvios da uniformização, da exclusão, da opressão; “turbulências” - como ele diz - que não obedecem a relações de causalidades fechadas nem temporalidades lineais. A Relação é parte do pensamento arquipelágico, portanto, disside das interpretações do Caribe que se fecham nas dicotomias terra-mar, ilha-continente, colônia-metrópole e passa a pensar a região a partir das contingências internas, das dinâmicas de hibridação e subversão de cânones impostos, incluídos modos, línguas, artes. Ele quebra as noções essencialistas de território, nação, raízes, identidade e linearidade e se centra em estudar as rupturas, a instabilidade e o provisório.
Acreditamos ser importante destacar que os processos opacidade, Relação e crioulização são explicados a partir da teoria do Caos5; o que também coloca Glissant dentro da tradição pós-estruturalista de leitura do Caribe. O Caos como episteme fala em sistemas dinâmicos, em conjuntos de elementos que entram em contado e se movimentam de forma não linear. O caos olha para tudo o que se reproduz, cresce, se repete, se espalha, flui, gira sem relações fechadas de causa e efeito. Essas premissas de movimentos e interrupções abruptas e sem ordem cronológica servem aos teóricos caribenhos da pós-modernidade (Glissant, Benítez Rojo) para falar sobre choques descontínuos, sobre dinâmicas históricas de fatos fortuitos (venda de escravos, saqueios de piratas, revoluções, golpes militares, comércio ilegal...) que fazem parte da configuração cultural e identitária da região.
Por último, a Relação é uma reflexão sobre o Ser e a identidade em que o ser significa Ser sendo, se ligando ao micro, ao macro, a ele mesmo e aos outros, sem início nem fim. Um Ser em movimentos e desvios, em permanente estado de elaboração de novos sentidos e significados que acabam sendo sempre insuficientes porque é justo a insuficiência a que permite que o fluxo não acabe. Aliás, para que se cumpra a Relação precisa-se de um certo estado de marginalidade, de adversidades compartilhadas e de opacidade. É necessário que todos renunciem à rotundidade do eu para dar espaço para a entrada de retalhos de tantos “Outres”. Trata-se de um se conectar em que se perde a fronteira precisa do que é exclusivo de alguém e o que é exclusivo do Outro. Um estar que pressupõe entropia, poli ritmo, subversão, multilinguismo e que leva a “resultados” inacabados e provisórios.
Como decorrência da opacidade e da Relação surge a crioulização: retalhos de línguas, dialetos, culturas, imaginários em contato que conformam novidades imprevistas. A crioulização nasce no Caribe e se espalha pelo mundo devido à mobilidade, globalização, guerras, precariedade, catástrofes ambientais... A totalidade se impõe: o que acontece num lugar, por mais distante que esteja, repercute inesperadamente em qualquer outro. Crioulização é um conceito que se usa para falar das contingências atuais de movimento de pessoas pelo mundo e das artes da contemporaneidade. A errância de pessoas pelo mundo, a celeridade, as desigualdades, etc. colocam representantes de culturas diferentes em contato, as raízes se afrouxam, os territórios perdem sua força, os espaços são momentâneos, as línguas se contaminam, as comidas se misturam, os tons se sobrepõem, as notas se amontoam.
Crioulizar quer dizer criar de ecos, de retalhos; por isso as noções de inesperado, de inacabamento e de porvir são tão importantes. Crioulização não é um método, diz Glissant, pois isso implicaria pensar em paradigmas e regras, é uma poética, uma maneira de estar no mundo. As alteridades andam soltas, fora de casa em troca e negociação com um entorno mutante e precário que embaça os atributos autóctones, os criouliza. Crioulização é estar em abertura à totalidade, um estar em teia, independentemente da latitude em que se habite.
Nós nos deslocamos na superfície, na extensão, tecendo nosso imaginário e não preenchendo as lacunas como um saber; mas, ao contrário, removendo aquelas cheias demais, à medida em que avançamos, para finalmente conceber volumes de infinito. (Glissant, 2021, p. 239).
Referências
-
BENAVENTE MORALES, Carolina . El lenguaje-nación y la poética del acriollamiento: Una conversación entre Kamau Brathwaite y Édouard Glissant. Revista Literatura y linguística. Santiago de Chile, n. 19, p. 311-329, 2008. Disponível em: http://www.scielo.cl/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0716-58112008000100019&lng=es&nrm=iso Acesso em 07 dez. 2023.
» http://www.scielo.cl/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0716-58112008000100019&lng=es&nrm=iso - BENÍTEZ-ROJO, Antonio . La isla que se repite Barcelona: Casiopea, 1998.
- BRATHWAITE, Edward Kamau. La criollización en las Antillas de lengua inglesa. Cuadernos de cultura latinoamericana n. 83, 1979.
- CARPENTIER, Alejo. Concierto barroco La Habana: Editorial Letras Cubanas, 1987.
- DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil mesetas. Capitalismo e esquizofrenia Valencia: Pre-Textos, 1997.
-
DERRIDA, Jacques. La différance Edición digital Derrida en Castellano, 1998. Tradução de Carmen González Marín. Disponível em https://redaprenderycambiar.com.ar/derrida/textos/la_differance.htm. Acesso em jul. 2020.
» https://redaprenderycambiar.com.ar/derrida/textos/la_differance.htm. - GLISSANT, Édouard . Poética da Relação Tradução de Marcela Vieira e Eduardo Jorge de Oliveira . Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021.
- GLISSANT, Édouard . Le discoursantillais Paris: Editions du Seuil, 1981.
- GLISSANT, Édouard . Introdution à une poétiquedu Divers Paris: Gallimar, 1996.
- LORENZ, Edward Norton. La esencia del caos Madrid: Editorial Debate, 1993.
- ORTIZ, Fernando. Contrapunteo cubano del tabaco y del azúcar La Habana: Editorial Jesús Montero, 1940.
-
1
“De certa maneira” é uma frase usada repetidamente por Benitez Rojo (1998) em La isla que se repite com o propósito de dar mobilidade e instabilidade à uma análise que reflete justamente sobre o instável e mutante.
-
2
Rizoma: conceito desenvolvido por Giles Deleuze e Félix Guattari em: Mil mesetas. Capitalismo y esquizofrenia, publicado em Espanha, pela Editoral Pre-Textos, em 1997.
-
3
Conceito desenvolvido por Jacques Derrida ao longo da sua trajetória, mas introduzido em 1968 no texto Différance.
-
4
Para mais detalhes Vide: El lenguaje-nación y la poética del acriollamiento: Una conversación entre Kamau Brathwaite y Édouard Glissant por Carolina Benavente Morales, disponível em: https://www.scielo.cl/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0716-58112008000100019&lng=es&nrm=iso%20Acesso%20em%2007%20dez.%202023%20.
-
5
A Teoria do Caos ganha importância em 1993 com a publicação do livro La esencia del caos, do matemático e meteorologista estado-unidense Edward Norton Lorenz (1993).
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
15 Nov 2024 -
Data do Fascículo
Sep-Dec 2024
Histórico
-
Recebido
20 Mar 2023 -
Aceito
16 Jun 2023