em 2014 publiquei um livro que era um teste
e que conversava com o livro de hocquard
tentei incorporar algumas ferramentas do ensaio
para dentro do poema
será que assim daria para ver
a carga teórica de um poema?
depois de publicado o livro me perguntaram:
por que você insiste em chamar de poema?
será que o poema continua sendo poema?
será que o poema deixa de ser poema
por que se confunde com outro gênero?
será que esse teste poderia ser um ensaio?”
Marília Garcia
Durante muito tempo, a certeza garantira para as sociedades uma coesão. Crendo nas mesmas divindades, compartilhando os mesmos valores ou apoiando-se nas mesmas verdades, seres humanos sentiam-se juntos, orientandos em uma só direção. Por mais opressora que pudesse ser, a certeza oferecia a sensação de chão comum, ou, como a filosofia tantas vezes afirmou, constituía um fundamento. Por contraste, valeria supor que a incerteza nos faz perder essa coesão, pois tira o fundamento universal sob os nossos pés. Pode ser, entretanto, que, se a certeza se impunha, a incerteza pudesse ser, mais precariamente, partilhada. A incerteza como uma corrente subterrânea, difusa, que se infiltrava no maciço do que se tomava por garantido e ali ia produzindo fissuras, encontrando brechas. O ensaísta e poeta mexicano Octavio Paz (1984) falava, em referência a questões próximas das que aqui nos interessam, de uma “solidão aberta” e das “mãos dadas dos solitários”.
Não deve ser acaso que Paz era ensaísta e poeta, uma vez que as duas formas - o ensaio e a poesia - lidam com a incerteza. Frise-se: lidam - não resolvem. Ensaio e poesia são formas pelas quais, na linguagem e com a linguagem, correspondemos à incerteza: histórica e existencial, social e íntima, coletiva e individualmente. Na escrita dos ensaios e dos poemas, a experimentação com o que não se sabe e com o que não se está de todo certo ganha tração. Experimentar, já se disse em outro lugar e em outro tempo, é também inventar: ao nos lançarmos ao desconhecido com as armas de uma escrita vacilante, exploratória (como é a dos ensaios e dos poemas), vamos inventando a nós mesmos, criando aquilo que somos - ou aquilo que podemos um dia vir a ser.
Muito do que já se disse sobre a poesia (sobretudo a poesia moderna) poderia também valer para o ensaio. As afinidades são tantas que inúmeras descrições parciais do texto poético lançam luz (também de modo parcial e inconclusivo) sobre o ensaio e seus desafios. Alguns exemplos: o apreço pela brevidade e pela contenção, mesmo em textos longos; a escolha do mundo menor e dos ângulos inusitados para observar e pensar o real; a forma aberta e permanentemente curiosa, que conduz a escrita ao tateio, ao risco e ao surpreendente, numa incessante produção de objetos verbais híbridos; a elaboração de uma voz (ou de várias) que fala antes de tudo consigo mesma, num diálogo com o leitor, ou com as coisas, que passa, de modo decisivo, sempre pela subjetividade; a presença do corpo e dos sentidos na configuração do texto, numa espécie de “pensar com as mãos”, conforme Starobinski (2012) afirmou sobre Montaigne, que faz do ensaio - e do poema - exercícios de ritmo e matéria de jogo, aventuras textuais feitas de repetições e de variações cujos cálculos sempre escapam à medida, excedendo modelos e competências técnicas, tocados pelo que há de acaso em um corpo, uma obra, um fenômeno cultural ou artístico qualquer.
Essa breve lista poderia continuar - aliás, o prazer das listas, conforme lembra Brian Dillon (2020), é inerente ao ensaio, assim como ao poema. O que interessa, no entanto, não é esgotar todos os cruzamentos e sobreposições possíveis entre poesia e ensaio, mas identificar a afinidade profunda que move esses, por assim dizer, gêneros sem gênero. Isso é o que anima esta coletânea de artigos que aqui se apresenta, neste novo número de ALEA. O objetivo da chamada foi discutir questões relativas ao ensaio que se movem e se deixam perceber melhor no território aberto pela interseção com a poesia e a reflexão crítica sobre a criação poética. Ou entender a poesia e as diversas configurações do poema na contemporaneidade quando da sua contaminação pelo ensaio, no momento em que sua impureza fundamental se explicita no diálogo com formas ensaísticas.
Nesse sentido, a incerteza de que se trata aqui é, além de tudo, a da própria fronteira entre o ensaio e a poesia. Onde um acaba e o outro começa? Se o ensaio parece se encontrar em devir de poesia, a poesia parece se encontrar em devir de ensaio. Se o ensaio poetifica, a poesia ensaia. Se o ensaio cria, a poesia reflete. Se o ensaio é invenção, a poesia é reflexão. Se o ensaio narra, a poesia pensa. Nos dois casos, há uma recusa em comum: à petrificação da verdade em sistema. Nem o ensaio e nem o poema pretendem definir ou concluir coisa alguma. Nada fecham, apenas abrem. Querem antes mostrar o mundo, pensá-lo como imagem. Experimentam. Voltam. Revoltam. Indicam. Fazem pensar.
Se na origem do ensaio estava Michel de Montaigne (2016) ainda no século XVI, foi apenas no século XX que emergiu uma verdadeira teoria do ensaio, que se interrogou sobre o que ele seria. No começo dessa história estava o filósofo Georg Lukács (2015), que sagazmente percebeu que a proximidade fundamental do ensaio não era com a ciência, e sim com a poesia, uma vez que ambos nos afetam pela forma. Por isso, pode-se entender muito bem uma teoria científica sem contato com sua linguagem própria, como os manuais escolares costumam fazer. Quem, entre nós, leu Isaac Newton ou Einstein na escola? Tivemos contato com as suas ideias, mas sem a experiência direta dos seus textos.
Por outro lado, lemos Fernando Pessoa e Drummond. Por quê? Porque, na poesia, não consideramos possível apreender o conteúdo preciso a não ser em sua forma específica. Na ciência, o conteúdo pode ser transmitido em outra forma, mas não na poesia. Ela só é o que é na forma que tem. Forma, para todos os efeitos, indeterminada, o que é o mesmo que dizer, incerta. Para Lukács (2015), o ensaio, como a poesia, afeta-nos assim: pela forma. Seu conteúdo não é separável da forma, sua ideia não se aparta do modo de expressá-la. Daí que o ensaio tenha uma incontornável dimensão literária. Theodor Adorno (2003) falou mesmo do “ensaio como forma”.
Paralelemente, desde pelo menos o Romantismo alemão no século XVIII, o ensaio não apenas surge como emblema para a crítica de arte como, simultaneamente, a poesia se torna mais e mais reflexiva. Na época, Schiller contrastava, sob esse aspecto, a poesia majoritariamente antiga, que seria ingênua e espontânea, à poesia comum à modernidade, que seria sentimental e autorreflexiva - pensando sempre sobre si mesma enquanto se faz. Se a metalinguagem da poesia é tão antiga quanto Homero, ela agora se tornava reflexividade filosófica e exigência poética. Daí que a poesia moderna tenha também, por vezes, tendido, ora mais direta e explicitamente, ora de modo mais velado, ao ensaio. Friedrich Schlegel já chamava o ensaio de um “poema intelectual”, ao mesmo tempo que falava de uma poesia transcendental. Esse legado moderno de radicalidade na transição dos gêneros e das formas é a foz do rio que deságua no oceano contemporâneo.
Oceano que recebe as águas dessa foz moderna sem se privar, entretanto, de criticar sua gramática e seus textos, cujos discursos em torno da certeza e do progresso técnico-científico, histórica e hegemonicamente separaram, dividiram e exploraram o mundo - sendo o colonialismo e o tráfico de pessoas escravizadas a face mais obscura da consciência esclarecida. Um programa ético-político, mas também estético, que não reproduza a violência do pensamento moderno exigiria repensarmos por fora, quer dizer, para além dos limites desses textos, formas outras de realizar a partilha das diferenças. Imaginando arranjos de outros mundos possíveis.
Ideias como as de imaginação e incerteza balizam o pensamento crítico da filósofa e artista Denise Ferreira da Silva (2016). Ao empreender uma crítica à modernidade nas primeiras décadas de nosso século XXI, ela nos convida a pensar a ideia de uma “diferença sem separabilidade”, desamarrando o pensamento dos preceitos cartesianos do método (a certeza e a separabilidade). A ideia de uma “diferença sem separabilidade” parece ir ao encontro da relação positiva entre poesia e ensaio sob o paradigma de uma partilha da incerteza que deseja preservar as diferenças de uma e outro sem, no entanto, separá-los.
Se é assim, esse mundo contemporâneo bem poderia ser resumido por uma fórmula que veio não da sociologia ou das ciências humanas, e nem também do universo das artes ou da estética, mas da física: o princípio da incerteza, formulado por Werner Heisenberg. Involuntariamente, ele, que buscava uma explicação para fenômenos naturais, nomeou um espírito - o da nossa época. Desde que Friedrich Nietzsche sentenciou, ainda no final do século XIX, que “Deus morreu”, a certeza da incerteza ou a incerteza que habita toda certeza instalou-se de modo definitivo entre nós. Pois Deus, aqui, evidentemente não é o ente teológico - que, por definição, é imortal, caso se acredite nele; ou não pode morrer porque não existe, caso não se acredite nele.
Era a crença em qualquer verdade metafísica, universal e imutável que declinava, como um belo e antigo sol que se punha. Era o fim da certeza. É significativo também que tenha sido o mesmo Nietzsche quem, propondo um giro antiplatônico para a filosofia, tenha trazido novamente à tona, e com mais força, a poesia, apresentada por ele como parte inseparável do pensamento. Giambattista Vico tinha tentado, em outras bases, repropor a dimensão pensante da poesia ainda no século XVIII, mas foi com Nietzsche, um leitor dos românticos alemães, que a poesia, em muitos sentidos, retornou ao centro do debate filosófico.
No conhecimento, não se tem mais certeza do que é o verdadeiro ou falso. Na moral, não se tem mais certeza do que é o bem ou o mal. Na estética, não se tem mais certeza do que é belo ou feio. Entretanto, essa incerteza pode não ser apenas motivo de nostalgia ou reacionarismo - como tantas vezes foi e ainda hoje é. Foi ainda Nietzsche quem apontou que, para os espíritos livres, esse sol poente da tradição poderia ser sucedido por uma nova aurora. Ou ainda, para retomarmos a metáfora do oceano contemporâneo, Nietzsche dizia que nunca antes houve tanto mar aberto para navegarmos. E navegar assim, à flor de águas imensas e desconhecidas, ao contrário do que já disse o poeta, não é preciso - é impreciso.
Não temos mais certeza, portanto, do que é um ensaio e do que é um poema. Mas, pode ser que, agora, um texto possa ser um pouco uma coisa e um pouco outra, ou que haja, ao menos, uma intersecção entre ensaio e poesia. Se há textos que habitam territórios, pode haver aqueles que cruzam as fronteiras entre os territórios e vão instalar-se na zona limítrofe. É o caso de tantos ensaístas, e é o caso de três poetas importantes para a problematização radical dos gêneros em tela que se dá nos nossos tempos: a canadense Anne Carson, a argentina Tamara Kamenszain e a brasileira Marília Garcia (2018). Para elas, diante do desafio lançado pelos seus trabalhos, o termo dúplice (e voluntariamente ambíguo) poema-ensaio tem sido testado - numa busca conceitual que é também tateio, encontro às cegas, dança do desejo. O ensaio e a poesia parecem formas em trânsito, nesse sentido. São as escritas-limite de um mundo medidas e sem certezas. O que convidamos a leitora e o leitor a fazer, a seguir, é acompanhar como alguns autores, em seus textos, fizeram essa travessia.
No trabalho que abre o dossiê A partilha da incerteza, “Erudição e amadorismo: notas sobre o ensaio e o poema-ensaio em Anne Carson”, Rafael Zacca Fernandes procura pensar, a partir da obra da escritora canadense e das noções operatórias de erro e prazer, a forma híbrida dos seus textos, sua prática artística indisciplinada e interdisciplinar. Já Guilherme de Souza Lopes vai apresentar, em “Ensaiar a incerteza: a ideia de poesia como questão”, reflexão que se elabora a partir da interseção problemática entre poesia e prosa, entendendo que o ensaio, tradicionalmente ligado à prosa do mundo e ao imediato da vida política, pode abrir-se para o pensamento poético, tornando-se horizonte de possibilidades para a poesia. Em “Frase, verso, hiato. E desejo”, Julia Klien pensa sobre o desejo comum que poesia e ensaio têm pela carnalidade da língua, pela densidade da escrita e pelos limites, arestas e intervalos que atravessam a linguagem com que se fazem o ensaísmo e a poesia.
Abrindo uma sequência de três textos atravessados pela questão do feminino, que se associa produtivamente à discussão sobre ensaio e poesia, o artigo “Conversa evânica: por uma outra genealogia do ensaio”, de Danielle Magalhães, reivindica outras origens para o ensaio, em um gesto que procura deslocar o gênero do campo da fratria (a amizade entre homens, entre iguais) para o campo do contato subterrâneo das mulheres proscritas, que fariam um uso subversivo da linguagem, fazendo nascer daí a liberdade associativa e política do ensaio. Por sua vez, Isadora Urbano vai se debruçar, em seu artigo, sobre a escrita da perda e do luto, analisando detidamente o poema-ensaio de Isadora Foes Krieger, Tanatografia da mãe, como modalidade reflexiva de escrita de si. Em “‘Siempre me ponen poeta y ensayista’”: reflexões sobre Libros chiquitos e Chicas en tiempos suspendidos, de Tamara Kamenszain”, Mariana Fontes da Silva Cunha lê dois dos últimos livros publicados pela importante poeta argentina a fim de compreender como, em sua obra, poesia e ensaio não são apenas gêneros em diálogo, mas formam um só tecido textual, uma trama inseparável.
Daniel Pucciarelli, em “Também neste pântano aqui: Hans Magnus Enzensberger e os limites da poesia”, investiga, a partir da poesia e da obra ensaística do autor alemão, a complexa questão das fronteiras do poético e do não-poético, territórios instáveis e em movimento permanente, num processo de negociação tão produtiva quanto tensa. Em novo texto relacionado à obra da autora de Autobiografia do vermelho, “O método Anne Carson”, Victor Calcagno procura descrever, a partir da análise de um caso particular, os traços fundamentais da poética da autora, erigida em torno da tradução e de procedimentos ensaísticos como a mistura e a recombinação de fragmentos de outros textos. Já Mário Sagayama, em “Pensar com as mãos: História(s) do cinema, da tela à página”, vai encontrar na obra híbrida e multifacetada de Jean Luc Godard um conjunto de objetos correlacionados que movimentam-se em torno da passagem entre cinema, poesia e ensaio, entre imagem, verso e reflexão filosófica.
Em “O ensaio e a aventura do nome próprio”, Kelvin Falcão Klein se põe a pensar, a partir de uma constelação bastante particular de autores modernos e contemporâneos, como o ensaio se relaciona com a questão do nome próprio, elemento poético por excelência, ponto de partida da língua e de tudo que nela se torce e transtorna para fazer-se poema. Em “Não ensaiar: Do poético ao ensaístico e de volta outra vez, entre Roland Barthes e Paloma Vidal”, Luís Felipe Abreu recupera a obra fundamental, para a compreensão e a prática do ensaio na contemporaneidade, de Roland Barthes a partir dos usos que faz dela a escritora argentino-brasileira Paloma Vidal.
Por fim, os três textos que fecham o dossiê A partilha da incerteza dialogam com as potencialidades plásticas e expansivas do ensaio, que vai mostrar-se aberto aos experimentos formais e às proposições conceituais apresentados por, respectivamente, Patrícia Lavelle (autora de “Filomela: do poema ao ensaio), Ana Kiffer (autora de “O mundo treme por toda a parte”) e Felipe Charbel (autor de “O ensaísta aposentado”).
Lavelle vai trazer o mito de Filomela para o centro do seu texto, articulando, a partir das refrações do mito grego, uma reflexão sobre voz e silêncio que passa por autores como Walter Benjamin e Pascal Quignard, entre outros. Já Ana Kiffer, por sua vez, traz o pensador Edouard Glissant para a discussão, tomando dele a noção ampla de um pensamento do tremor - uma forma que, de algum modo, combina-se com a escrita experimental do ensaio e procura dar conta das incertezas políticas e sociais do mundo contemporâneo. Charbel, no fecho deste número, combina, em seu texto, procedimentos da narrativa ficcional com as práticas reflexivas do ensaio, procurando pensar como certa “atitude ensaística” definidora das escritas que identificamos com o gênero está associada, em contraste com a figura do romancista profissional - conectado ao mercado e senhor de um tempo produtivo -, com o amadorismo, com o ócio e com a rebeldia de um tempo não quantificado, rebelde, dispersivo e alegremente marcado pela improdutividade.
Gostaríamos de agradecer às autoras e autores pelo envio dos textos. Gostaríamos também de agradecer aos colegas da ALEA pela acolhida e por todo o empenho no trabalho de edição do dossiê.
Boa leitura.
Referências
- ADORNO, Theodor W. O ensaio como forma. Tradução de Jorge de Almeida. In: ADORNO, Theodor W. Notas de literatura I São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2003. p. 15-45.
- DILLON, Brian. Ensaísmo Tradução de Nuno Quintas. Lisboa: Bazarov, 2020.
- GARCIA, Marília. Parque das ruínas São Paulo: Luna Parque, 2018.
- LUKÁCS, Georg. Sobre a forma e a essência do ensaio: carta a Leo Popper. In: LUKÁCS, Georg. A alma e as formas Tradução de Rainer Patriota. Belo Horizonte: Autêntica, 2015. p. 31-54.
- MONTAIGNE, Michel. Ensaios Tradução de Sergio Milliet. São Paulo: Editora 34, 2016.
- PAZ, Octavio. O labirinto da solidão Tradução de Eliane Zagury. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984.
- SILVA, Denise Ferreira da. Sobre diferença sem separabilidade. Incerteza viva Catálogo da 32ª Bienal de Arte de São Paulo, p. 57-65, 2016
- STAROBINSKI, J. É possível definir o ensaio? Tradução de André Telles. Serrote, n. 10, p. 43-61 2012
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
15 Nov 2024 -
Data do Fascículo
Sep-Dec 2024