A partilha da incerteza: relações entre ensaio e poesia
Quando José Lezama Lima, em A expressão americana (1988), postula uma forma de interpretação do mundo americano ancorada em operações poéticas, nos oferece um modo diferenciado de entender a relação entre história, poesia e ensaio. A precedência da ordem da imaginação à ordem da história que sustenta sua proposta de leitura/escrita de América pode ser um bom ponto de partida para pensar a afinidade do ensaio e da poesia como formas de incerteza e de leitura oblíqua do mundo, em contraponto com as formas do sistema coeso das certezas e das verdades absolutas. Essa ideia paira na reflexão dos Editores Convidados que prepararam o dossiê que preside o número 26/3 de Alea, quando afirmam que o ensaio e a poesia “são formas pelas quais, na linguagem e com a linguagem, correspondemos à incerteza: histórica e existencial, social e íntima, coletiva e individualmente”.
Explorar os encontros, as complementariedades, as sobreposições e as afinidades entre ensaio e poesia foi o foco de interesse da chamada de Alea para o dossiê do último número do ano 2024. Interessava refletir em certos modos coincidentes de pensar e dizer o mundo nos discursos do ensaio e da poesia, modos que reconhecemos na opacidade (Glissant, 2021), no tremor (Glissant, 2014), na incerteza que nos preserva “do pensamento de sistema e dos sistemas de pensamento” (Glissant, 2014, p. 22); pretendíamos indagar suas formas de exploração da linguagem, que encontram espaço no mistério e na indizibilidade da palavra expressiva; motivava-nos entender esse duplo movimento que articula o ensaístico do poema e o poético do ensaio, o vai e vem de certas escritas que se produzem na fricção do poema e o ensaio, e destes com outros gêneros.
De múltiplas maneiras, os artigos reunidos no dossiê circulam por todos esses pontos de reflexão propostos na chamada, textos que recuperam a indagação teórica em torno do ensaio, da poesia, do poema-ensaio ou de outras formas hibridas que, atravessadas pelas escritas de vida o pela ficção romanesca, se entrelaçam com o discurso poético e ensaístico; estudos críticos; propostas comparadas e até reformulações historiográficas que se adentram na reflexão das filiações literárias, antecedidos todos de umas esclarecedoras palavras de apresentação dos Editores Convidados.
Abrindo o espectro temático do número, na seção de Artigos incluimos três textos que, de diversas maneiras se debruçam na caraterização dos estudos literários na contemporaneidade. O primeiro está focado no âmbito do Brasil e discute como a atual diversificação de tendencias teóricas e críticas nos estudos literários brasileiros não necessariamente aponta para uma pacífica convivência, pois todas essas linhas teóricas definem seu objeto de estudo através de um discurso normativo (implícito ou explícito), tornando-se paradoxais. No artigo se postula a possibilidade de superar esses paradoxos com as ferramentas da hermenêutica. Assim, a partir da ideia do conflito das interpretações e com o apoio da hermenêutica crítica de Paul Ricœur tenta-se compreender e transcender esses desencontros.
O segundo artigo, embasado na argumentação de Adorno em “O ensaio como forma” (2003), debruça-se na tarefa de mostrar a existência de um conjunto coerente de prolegômenos a uma teoria dialética da crítica literária, verificando em que medida os atributos da forma do ensaio podem ser tomados como princípios de interpretação da obra literária e quais limites e contribuições a compreensão adorniana desses princípios se apresentam no atual debate epistemológico da teoria literária.
No último artigo da seção se oferece um estudo do poemário de El huso de la palabra do poeta peruano José Watanabe Varas, à luz da retórica textual de Stefano Arduini e da crítica cultural de Antonio Cornejo Polar, articulando os conceitos de campo figurativo (Arduini, 2000) e de sujeito migrante (Cornejo Polar, 1994).
Na seção de Entrevistas transcrevemos a entrevista do escritor brasileiro Michel Laub, realizada por Gabriel Martins, Luiza Müssnich e Mateo Baldi (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro), por ocasião do lançamento do romance Passeio com o gigante (2024). Nesse encontro, Laub oferece um balanço crítico de sua obra, explica a relação de seus romances com outras formas literárias (especialmente como o ensaio) e se estende no tema de Passeio com o gigante, oportunidade que lhe permite debater questões da crise política brasileira e oferecer sua perspectiva em torno das implicações da ficção no debate público. Aproveitamos este espaço para agradecer publicamente ao escritor pela generosidade de autorizar a publicação de suas palavras nessa entrevista nas páginas da revista Alea.
Fecham o volume duas resenhas de publicações recentes. A primeira apresenta a edição brasileira de Poética da relação (2021), de Édouard Glissant, um livro cardinal do escritor martiniquense, lançado em Paris, em 1990 e lido hoje no Brasil graças ao trabalho tradutório de Marcela Vieira e Eduardo Jorge de Oliveira para a editora Bazar do Tempo, do Rio de Janeiro. A segunda apresenta o livro de contos do escritor nascido em Pará, mas filho adotivo de Manaus, Zemaria Pinto, Os que andam com os mortos (2024), um trabalho da editora Valer, de Manaus, que reúne trinta textos ambientados na Amazônia dos últimos setenta e cinco anos.
Colaboraram com este número pesquisadores das seguintes instituições: Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro; Universidade Federal de Minas Gerais, Universidade do Estado de Minas Gerais, Universidade de São Paulo, Universidade Estadual de Campinas, Universidade Federal do Amazonas e Universidad de Lima. Chegue a eles nosso agradecimento. Da mesma maneira, externamos nosso agradecimento a toda a equipe de pareceristas que participou no processo de avaliação de originais e especialmente aos Editores Convidados, Prof. Dr. Gustavo Silveira Ribeiro, Profa. Dra. Jessica Di Chiara Salgado e Prof. Dr. Pedro Duarte de Andrade pela valiosa colaboração na preparação do dossiê.
A nossos leitores, como sempre, desejamos uma boa e produtiva leitura.
Referências
- ADORNO, Theodor. O ensaio como forma. In: ADORNO, Theodor. Notas de Literatura I Tradução e apresentação de Jorge de Almeida. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2003. p. 15-46
- ARDUINI, Stefano. Prolegómenos a una teoría general de las figuras Murcia: Universidad de Murcia, 2000.
- CORNEJO POLAR, Antonio. Escribir en el aire Ensayo sobre la heterogeneidad socio-cultural en las literaturas andinas. Lima: Editorial Horizonte, 1994.
- GLISSANT, Édouard. Poética da Relação Tradução de Marcela Vieira e Eduardo Jorge de Oliveira. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021.
- GLISSANT, Édouard. O Pensamento do tremor Tradução de Elnice Alberguaria e Lucy Magalhães. Juiz de Fora: Editora da UFJF, 2014.
- LIMA, José Lezama. A expressão americana Tradução de Irlemar Chiampi. São Paulo: Brasiliense, 1988.
- PINTO, Zemaria. Os que andam com os mortos Manaus: Valer, 2024.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
15 Nov 2024 -
Data do Fascículo
Sep-Dec 2024